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Em defesa do direito de pessoas transgênero à prática esportiva

Wagner Xavier de Camargo 20 de outubro de 2019

Há alguns meses tem sido arrolado na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), em caráter de urgência para votação, um projeto de lei que castra a participação de pessoas transgênero no esporte de competição. O famigerado, desumano e grosseiro projeto de lei, PL 346/19, postula que o dito “sexo biológico” seja o único critério válido para definir a possibilidade de atletas participarem de equipes profissionais em todo o Estado de São Paulo. Ele é de autoria do deputado estadual Altair de Morais, eleito no primeiro turno das eleições de 2018, pelo Partido Republicano Brasileiro (PRB).

O deputado Altair Moraes (PRB) é autor de projeto de lei que estabelece o sexo biológico como o único critério para definição de gênero de competidores em partidas esportivas oficiais no Estado de São Paulo. Foto: José Antonio Teixeira/Alesp.

Não são necessários muitos argumentos para demonstrar o quão absurdo é a defesa desta posição, haja visto que o próprio Comitê Olímpico Internacional (COI) e seus subcomitês que discutem critérios de elegibilidade e participação em competições esportivas profissionais vêm há anos pensando e repensando questões vinculadas a corpos transexuais ou transgêneros (isto é, corpos que discordam do gênero atribuído no nascimento). Apesar da entidade poder ser criticada pelo foco desmesurado na testosterona e no adestramento de níveis hormonais para viabilizar tal participação segundo suas normativas, ao menos ela admite uma brecha e permite que corpos se adequem/readéquem para competir.

O que mais me deixa chocado é observar a conduta deste deputado, eleito com mais de 80 mil votos no Estado, supostamente com a missão de se preocupar com o bem-estar das pessoas e defender direitos da população, redigir um projeto de lei que retira direitos de uma parcela desta mesma população que ele prometeu representar. Pessoas transgênero, homens-trans ou mulheres-trans, fazem parte deste todo populacional e têm o direito à prática de esportes. A partir da Constituição de 1988 constituiu-se um conjunto de premissas que vinculam à prática do esporte como um direito individual fundamental para o desenvolvimento integral dos indivíduos e como forma de produzir pessoas que atuem no exercício de suas cidadanias.

Uma das questões cruciais na defesa dos argumentos deste deputado é a crença inquestionável de que os corpos se classificam segundo as suas genitálias. Portanto, quem apresenta pênis é, “naturalmente” (aspas porque isso é equivocado), homem; quem tem uma vagina é, então, mulher. Qualquer dissonância na “composição genital”, por assim dizer, provoca classificações preconceituosas e discriminatórias, de pessoas que, talvez, não mereçam ostentar o título de seres humanos (homens ou mulheres). Seriam corpos abjetos, desviantes, “anormais”. Tenho até medo de saber se este deputado confere status de ser humano às pessoas transgênero.

A deputada estadual Érica Malunguinho (PSOL) e a jogadora de voleibol Thiffany Abreu. Foto: José Antonio Teixeira/Alesp.

As questões de gênero têm mobilizado amplos posicionamentos na sociedade brasileira nos últimos anos, em que pese serem muitos superficiais e acríticos do que produtos de um debate profundo. Algo que os feminismos mostraram foi que o sujeito universal masculino não passa de uma invenção e que a morte deste sujeito universal abriu as portas para as mulheres, para os negros, os gays, entre outros. Ou seja, viabilizou o sujeito plural, heterogêneo e contingente.

Colar as genitálias ao corpo e presumir que existem apenas “homens com pênis” e “mulheres com vaginas” no mundo e que, no universo esportivo, competem agrupados em semelhantes e entre si é de uma estreiteza mental absolutamente inacreditável. Mesmo no esporte, que se baseia ainda na divisão por sexos (homens x homens e mulheres x mulheres) para justificar as “igualdades de chances” já se mostrou que tal rígida classificação está ultrapassada e em vias de ser substituída – pelo menos é algo que tenho insistido em minhas pesquisas nos últimos anos.

O conceito de gênero funcionou, ao longo de suas transformações epistemológicas dos últimos 60 anos, como um meio de rejeitar o determinismo biológico instituído e aclamado como “verdade” a partir do que estava implícito no que se chamava de “diferenças sexuais”. Permitiu, num só golpe, problematizar e desconstruir uma representação naturalizada de homens e mulheres e de seus atributos de “masculinidade” e “feminilidade”. Graças a tais problematizações hoje temos que esses qualificativos podem ser atrelados a quaisquer corpos, e que gestualidades, estéticas, sexualidades, performances, etc. são construções históricas e discursivas.

Dani Nunes, Leonardo Peçanha, Gustavo Uchoa, Érika Hilton, Érica Malunguinho, Tiffany Abreu e Magnus Régios. Foto: José Antonio Teixeira/Alesp.

Resgatando Michel Foucault, um filósofo francês muito importante na apreensão crítica da realidade, foi por meio das redes de poder estabelecidas que a categoria analítica gênero deflagrou a falácia da diferença biológica, tomada para explicar as desigualdades sociais que geram exclusão de sujeitos e grupos. Isso também ocorre no esporte e o caso das pessoas transgênero exemplifica tal aspecto.

No último dia 08 de outubro tentou-se votar na Alesp o PL 346/19. Por falta de quórum e frente a um ato público de protesto, acabou-se desistindo da votação. Como está registrado como “caráter de urgência” é provável que em pouco tempo seja pauta novamente na casa. Como a cada dia que passa nos surpreendemos mais e mais com ações inacreditáveis de nossos/as eleitos/as (em todas as esferas de governabilidade), temo pela aprovação de tal projeto de lei no Estado.

Não preciso ser pessoa trans para me sensibilizar com esta questão. Como ser humano e ser social defendo que tais pessoas sejam respeitadas em suas decisões relativas a seus corpos, gêneros e sexualidades. Que seus corpos sejam instrumentos de provocação e de questionamento das ordens institucionalizadas e homogeneizadas. Que estas pessoas possam praticar esporte a partir das composição e apresentação corporais que bem escolherem. E que nós possamos tranquilamente conviver e aprender com elas.


Para ler mais sobre pessoas transgênero no esporte, seguem sugestões de alguns textos curtos, com discussões pontuais:

CAMARGO, Wagner X. “Agenda trans para o Esporte”. Ludopédio, São Paulo, v. 122, n. 29, p. 1-5, 25 ago. 2019. Disponível em: <https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/agenda-trans-para-o-esporte/>.

CAMARGO, Wagner X. “A era dos invisíveis no Esporte”. Ludopédio, São Paulo, v. 102, n.24, p. 1-4, 24 dez. 2017. Disponível em: <https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/era-dos-invisiveis-no-esporte/>.

CAMARGO, Wagner X. “Corpos Transgêneros no Esporte: algumas questões”. Contemporânea – uma (quase) revista, Florianópolis, v. 6, p. 10 – 12, 07 jan. 2017. Disponível em: <https://www.academia.edu/31933761/Corpos_Transg%C3%AAneros_no_Esporte_algumas_quest%C3%B5es>.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Em defesa do direito de pessoas transgênero à prática esportiva. Ludopédio, São Paulo, v. 124, n. 21, 2019.
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