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A era dos invisíveis no esporte

Wagner Xavier de Camargo 24 de dezembro de 2017

Em tempos tão sombrios como os que vivemos às vezes se torna difícil perceber transformações a nossa volta ou vislumbrar uma ‘luz no fim do túnel’ que seja. Da política ao esporte, passamos pela existência sendo bombardeados por notícias jornalísticas, que além de nos fazer descrentes na humanidade, muitas vezes nem sabemos se são verdadeiras ou falsas, se mesmo encontram respaldo na realidade ou não. O fato é que não prestamos atenção a tudo o que vemos ou lemos, e mesmo muita coisa nos passa despercebida.

Pois dois fatos ocorridos entre fins de novembro e início de dezembro últimos não podem passar batidos, pelo menos para quem acompanha minha coluna. O primeiro fato refere-se ao campeonato brasileiro de futebol gay entre oito equipes masculinas, que foi batizado de “Champions LiGay” (ao que parece uma paródia com a Champions League europeia) e foi organizado pela LiGay Nacional de Futebol (LGNF), situada no Rio de Janeiro. O segundo, por sua vez, diz respeito ao anúncio da equipe Vôlei Bauru, no dia 05.12, que contará com a atacante Tifanny Abreu em seu selecionado para disputar a edição 2017/2018 da Superliga feminina da modalidade. A jogadora é uma mulher-trans e ficou conhecida há algum tempo ao se tornar a primeira atleta brasileira transgênero a receber autorização da Federação Internacional de Vôlei (FIBV) para competir entre/com atletas mulheres.

A “liga gay de futebol”, como vem sendo chamada, estava sendo gestada desde meados do primeiro semestre. Tenho acompanhado algumas equipes que jogaram neste torneio e já havia uma mobilização em formação durante o evento da Parada LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, pessoas transgênero e outros) de São Paulo. Inclusive escrevi sobre os denominados “Jogos da Diversidade”, realizados um dia antes da grande parada (Camargo, 2017b). Lá participaram da modalidade futebol vários grupos que se fizeram presentes agora em novembro, na arena de society do Rio Sport, na Tijuca.

Com relação a Tifanny, há muito o que dizer, porque creio que ela abre precedentes para repensar homens e mulheres atletas (trans ou não) dentro do esporte. Basicamente, atletas transgênero só são admitidos/as em competições esportivas se controlarem seus níveis hormonais e se adequarem às normativas prescritas pelas federações esportivas e/ou, dependendo do nível de performance, seguir o que é estabelecido pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). Sobre mulheres-trans pesa algo a mais, visto que elas têm que controlar seus níveis de testosterona (potente hormônio que incrementa sobremaneira a performance esportiva) antes, durante e mesmo depois dos eventos competitivos. E a vigilância sobre esses corpos se justifica, mais uma vez, em nome da “equidade” no esporte.

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A jogadora de vôlei Tifanny Abreu. Foto: Instagram (Reprodução).

Por seu turno, gays praticando esportes não é, exatamente, uma novidade. Em nível internacional a prática sistemática esportiva de gays, lésbicas, bissexuais e outros sujeitos não heteronormativos tem sido registrada desde 1982, quando o decatleta estadunidense Tom Waddell liderou um processo que culminou na criação dos Gay Games, uma competição de caráter olímpico que tem por finalidade trocas de experiências esportivas entre pessoas excluídas de outros ambientes normativos do esporte. Para mim, que venho estudando o fenômeno do chamado “esporte LGBT+” há mais de uma década em vários locais do mundo, o que é surpreendente é a prática sistematizada de futebol por parte de grupos de homens brasileiros, que mantêm relações sexuais com outros homens e se dizem “fanáticos” pelo esporte bretão. Fenômeno inédito, diga-se de passagem, e (ainda) de difícil interpretação. Se são sujeitos que tiveram histórias dolorosas de discriminação, rejeição e preconceito no próprio futebol e mesmo na Educação Física em suas vidas estudantis, por que declarar “amor” ao esporte “algoz” e insistir em sua prática? Estaria mesmo somente em pauta o “ocupar o lugar negado” e “mostrar ao mundo heterossexual” que gays também podem jogar bola? O fato é que as equipes estão aumentando e sua midiatização tem acontecido de forma bastante acelerada.

Por exemplo, sabe-se da existência de vários times em atividade, como Bulls Football Club, Unicorns, Futeboys, Natus F.C. na cidade de São Paulo; BeesCats Soccer Boys e Alligaytors, no Rio de Janeiro; Bharbixas, em Belo Horizonte; Bravus, em Brasília; Magia, em Porto Alegre; Sereyos Futebol Clube, em Florianópolis. Muitos desses estiveram no evento carioca em novembro passado. Há, ainda, outros grupos que não são midiatizados (porque não desejam exposição) e ainda outros que adotaram o futebol, mas não são “homens gays”, e sim gêneros não binários ou corpos transgêneros.

O corpo trans de Tifanny no voleibol é algo de extremo ineditismo em âmbito nacional. Em termos internacionais, os Jogos Olímpicos Rio-2016 visibilizaram os casos de hiperandrogenia da corredora meio-fundista Caster Semenya, da África do Sul, e de Dutee Chand, velocista indiana e recordista dos 100 metros rasos. Em que pese não terem se reconhecido enquanto pessoas transgênero durante a competição, ambas mantinham processos judiciais envolvendo a quantidade do hormônio testosterona e a elegibilidade para competir junto à Federação Internacional de Atletismo Amador (IAAF). Com as polêmicas em suspenso, e após a Agência Mundial Antidopagem (WADA) estabelecer níveis médios de testosterona em corpos de mulheres e homens (3,5 nmol/l e 35 nmol/l, respectivamente), desde 2015 a IAAF determinou em abaixo de 10 nmol/l os níveis de testosterona para que mulheres com hiperandrogenia pudessem participar de eventos com outras mulheres (Almeida, 2017).

Como já disse outrora, corpos transgêneros no esporte ainda são malvistos porque colocam em xeque a prerrogativa sobre a qual o próprio universo esportivo se assenta, qual seja, a da “igualdade de chances entre sexos”. Considerar tais corpos, portanto, não apenas problematizaria o binarismo de gênero, como abriria uma discussão sobre a gestão política e técnica do corpo e da sexualidade (Camargo, 2017a). Dessa forma, pelas problemáticas que provocam são mantidos invisibilizados!

Tifanny Abreu
Tifanny durante entrevista. Foto: globo.tv (Reprodução).

A opinião pública tem que entender, de uma vez por todas, que um corpo trans como o de Tifanny nunca vai “completar” a transição ou “chegar a algum lugar”, pois esse lugar de uma identidade de gênero feminina ou masculina não existe, a não ser como construção discursiva. E no tocante aos “atletas gays”, e pelo que pude observar nas várias filmagens de curtos vídeos sobre suas performances corporais durantes os recentes jogos do Rio, eles não estiveram lá para enfrentarem a masculinidade padrão ou para desafiarem o “ser macho” no futebol. O que tanto uns quanto outras/os lançam é justamente a desidentificação de gênero do que se convenciona socialmente e, mais do que tudo, outra estética corporal de se apresentar frente aos esportes – seja o futebol, o vôlei, o atletismo ou qualquer outro.

A presença é política e ocupar os espaços rígidos, doutrinários, preconceituosos e binários do esporte é uma função social das mais importantes. Tifanny e os jogadores de futebol podem não se conhecer ou mesmo saber da “causa” uns dos outros. Mas elaboram, a partir das próprias existências e de suas manifestações, questões políticas mais profundas, que certamente impactarão o meio esportivo de alguma forma.

Interessante perceber que, por mais que vivamos momentos de conservadorismo que afetam a sociedade e que nos deixam pessimistas e desacreditados, fatos como os trazidos por mim demonstram que as exceções ultrapassam as regras, que as dissonâncias brotam do sistema, que outras estéticas sexuais e corporais subvertem a normatização de corpos que habitam o mundo esportivo. Penso que as presenças de tais jogadores homoafetivos no futebol e de uma mulher transgênero no voleibol são suficientes para mostrar ao esporte brasileiro que há fissuras nas certezas instituídas e que há mudanças em curso, e que nem a “pátria de chuteiras” ou a mais intempestiva das torcidas organizadas poderão evitar.

Portanto, preparem-se: a era dos invisíveis no esporte já começou!

 

Referências


ALMEIDA, Cristina Matos. O fim de mais uma humilhação das atletas? Jornal Público (online). Disponível em <https://www.publico.pt/2017/12/15/desporto/opiniao/o-fim-de-mais-uma-humilhacao-das-atletas-1795872>, acesso em 17 dez. 2017.

CAMARGO, Wagner Xavier. Corpos Transgêneros no Esporte: algumas questões. Contemporânea – uma (quase) revista, Florianópolis, v. 6, p. 10 – 12, 07 jan. 2017a.

__________. Jogos da Diversidade de São Paulo. Ludopédio, São Paulo,  v. 96, n. 25, p. 01 – 04, 25 jun. 2017b. Disponível em < http://www.ludopedio.org.br/arquibancada/jogos-da-diversidade-de-sao-paulo/ >.

Time de futebol formado por gays dribla o preconceito. Programa Fátima Bernardes, 24.04.2017. Disponível em < http://gshow.globo.com/programas/encontro-com-fatima-bernardes/episodio/2017/04/24/debora-olivieri-duda-nagle-e-banda-onze20-participam-do-encontro.html#video-5822227>, acesso em 10 dez. 2017.

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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. A era dos invisíveis no esporte. Ludopédio, São Paulo, v. 102, n. 24, 2017.
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