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Agenda Trans para o Esporte

Wagner Xavier de Camargo 25 de agosto de 2019

No final de julho passado, o Superior Tribunal Federal da Suíça soltou decisão desfavorável ao recurso instituído por Caster Semenya, o qual garantiu por alguns meses que ela competisse sem se sujeitar às novas regulamentações de controle hormonal da Federação Internacional de Atletismo Amador (IAAF). Diante disso, ela não poderá participar do Mundial de Doha, no Qatar, de 28 de setembro a 06 de outubro de 2019. A IAAF tem sido implacável e tem perseguido Semenya e sua condição de hiperandrogenia, ou produção excessiva de testosterona. A polêmica está acalorada desde, pelo menos, o Mundial de Berlim, em 2009, quando a atleta sul-africana foi campeã pela primeira vez nos 800 metros rasos e acabou levantando suspeitas sobre sua “condição de mulher”. Sob acusações de ser uma pessoa intersexo, devido a exames que mostraram a ausência de útero e a presença de testículos internos, a questão toda ultrapassa Semenya e atinge, diretamente, corpos e gêneros não binários, seus níveis hormonais e suas práticas esportivas.

A problemática postulada pela IAAF de que corpos – principalmente de mulheres – devem controlar seus níveis de testosterona para poderem competir clama por “justiça” e “igualdade de chances” quando, em realidade, visa estabelecer vigilância sobre corpos que não se encaixam no binarismo de gênero proposto pelo mundo esportivo. A “terapêutica para alterar níveis hormonais e poder competir” é uma desculpa que objetiva estabelecer “corpos legítimos”, que requisitam o status de “natural” e, por isso, seriam então legitimados (e autorizados) a atuarem no esporte de alto nível.

A questão é, sobretudo, de gênero. Homens e mulheres não são tratados da mesma maneira (e pelas mesmas lógicas) no universo esportivo, que, muitas vezes, mantém prerrogativas machistas e sexistas. O caso do nível de testosterona é um exemplo. Atletas homens, que possuem testosterona acima do limite permitido, podem se submeter a exames que atestem tal fato e, a partir disso, estão liberados para competir sem risco de serem flagrados em testes de doping. Atletas mulheres já passaram por muitos controles, dos grosseiros testes de sexo às humilhantes verificações de gênero, e, no caso de mulheres trans (que estão transicionando de um corpo biológico de homem para o de uma mulher), os alertas são colocados no nível máximo.

Fallon Fox, mulher-trans no MMA. Foto: Reprodução/Facebook.

Uma atleta brasileira nesta condição é Tiffany Abreu, que atua na modalidade voleibol. Seu caso tem sido tratado nacionalmente sob diversos pontos de vista, desde os de jornalistas sensacionalistas a pesquisadores/as especialistas. A jogadora continua na ativa porque se adequou ao estabelecido pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) e pelas diretrizes internas da Federação Brasileira de Vôlei (FBV), responsável pelas condições de competição dos/as atletas em torneios nacionais.

Se em 2017 membros do COI discutiram sobre mudanças de sexo e casos de hiperandroginismo e deliberaram que atletas transgêneros podem competir sem a necessidade de cirurgia de redesignação sexual, ainda assim as regras anteriores sobre nivelamento/reposição hormonal (particularmente do encontro dos mesmos especialistas na Suíça, em 2015) foram mantidas.

O que deveria causar indignação em todos nós, espectadores/as de esporte, atletas ou não, é que as decisões oficiais destes órgãos de controle do esporte tomam como pressuposto que os corpos de pessoas trans (transexuais ou transgêneros, particularmente) e intersexo (portadores de dadas condições físicas funcionais distintas) são “anômalos” (aspas porque não concordo com tal designação) e considerados corpos ilegítimos diante de corpos biológicos “normais”, “naturais”, “legítimos”. Para usar um conceito teórico do mundo das pesquisas de gênero, tais corpos são alocados como abjetos, isto é, excreções, excrementos, pontos fora de qualquer condição vivível ou habitável.

Laurel Hubbard, mulher-trans no levantamento de peso. Foto: Reprodução/Facebook.

Ao contrário do que já ouvi em academias de musculação e mesmo em conversas de botecos, as pessoas não vão “querer virar transgêneros” para poderem competir nos esportes. Isso não passa por escolhas aleatórias, inconsequentes, frívolas. Na maioria dos casos, pessoas trans vivem dilemas horrendos, de dúvidas cruéis sobre si, seu sexo e sua identidade de gênero. Além da rejeição social enquanto vivem suas crises existenciais e mesmo antes de uma potencial transição de gênero, tais pessoas sofrem com intolerâncias e, muitas vezes, violências físicas e verbais. Bastou alguém apontar no direcionamento de um gênero que “não lhe diz respeito” (segundo a crença do senso comum), que aquele corpo adentra num espectro de invisibilidade sem precedentes. Tornar-se trans é tornar-se invisível para famílias, amigos/as, conhecidos/as. É habitar uma zona fantasma sem passaporte de retorno ao social. No esporte não é diferente, pois tal corpo coloca em chegue um sistema racionalizado e altamente burocratizado, instituído há mais de um século.

Corpos trans se desviam das normas porque não cabem nelas. E nós, de uma sociedade que mantém um vicioso olhar para questões alheias relativas a corpos e sexualidades, devemos levar em conta que são corpos que talvez nunca terminem suas transições de gênero. Quando consideramos o corpo de uma pessoa trans, em geral, tomamos como padrões os corpos biológicos normativos, que aprendemos a ver como representantes legítimos de nós mesmos, desconsiderando quase completamente as transformações em curso, propostas pelos corpos em transição. Como disse em outro momento, há que se levar em conta as transformações sofridas em cada corpo, não no sentido de observar “como” e “de que forma” ele está transicionando para um corpo biológico cisgênero masculino ou feminino, mas que permanecerá em processo e, muito provavelmente, se posicionando em fronteiras categoriais[1].

Hannah Mouncey, mulher-trans no handebol australiano. Foto: Reprodução/Facebook.

Portanto, há que se ter uma postura crítica sobre as determinações do COI e mesmo da IAAF sobre tais corpos, percebendo que esses impõem novas dinâmicas ao sistema esportivo, novas e outras lógicas de tratamento do chamado “corpo ideal”, e possivelmente novas reorganizações categoriais para o velho esquema “masculino e feminino”. E, certamente, tais corpos requisitam, do lugar que lhes é de direito, uma urgente e necessária agenda trans para o esporte!

Nota de rodapé

[1] CAMARGO, Wagner X. “Corpos Transgêneros no Esporte: algumas questões”. Contemporânea – uma (quase) revista, Florianópolis, v. 6, p. 10 – 12, 07 jan. 2017.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Agenda Trans para o Esporte. Ludopédio, São Paulo, v. 122, n. 29, 2019.
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