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Gripe Espanhola e Futebol no Brasil (Parte 2): Rio de Janeiro

Matheus Donay da Costa 25 de maio de 2020

Parte 2 – Rio de Janeiro

No texto anterior vimos o quanto capital pernambucana sofreu com a gripe espanhola. Agora veremos como o Rio de Janeiro atravessou o momento de epidemia e como os esportes foram afetados. Em setembro de 1918, os recifenses começavam a ser acometidos pela influenza espanhola. No Rio, os finais de semana eram efervescentes nos prados, nos estádios, ginásios, piscinas.

Aos domingos, a Liga Metropolitana (liga dos grandes clubes da cidade) movimentava multidões pelas ruas. Outras ligas como a Associação Athletica Suburbana e a Liga Suburbana de Futebol também funcionavam a pleno vapor.

Foto: Reprodução/O Paíz (RJ) 13 out.1918, p. 11.

Alternando-se a cada domingo, Derby Club e Jockey Club realizavam suas corridas. Havia ainda espaço para outras atividades, como o remo, a natação e outros esportes. Havia ainda aqueles que não possuíam tanto holofote, como o tiro ao alvo, o ciclismo, o tênis, entre outros.

Em resumo, o que não faltavam eram opções de esporte para acompanhar na capital do Brasil. Mas o quadro que foi modificado com a chegada da gripe espanhola no início de outubro

Logo no dia 09/10, o Rio de Janeiro registrava a primeira morte decorrente da epidemia. Aqui, podemos observar inclusive o esporte – ou a paixão por ele – como um possível vetor do crescimento da contaminação. No dia 12 de outubro centenas de torcedores rodearam o prédio do jornal O Paiz para descobrir o resultado do jogo entre o selecionado de São Paulo e Rio de Janeiro, válido pela Taça Rodrigues Alves.

Curva de mortes a partir do registro de enterros de vítimas da gripe espanhola nos cemitérios do Rio de Janeiro. Foto: Reprodução/Twitter @maishistoriapf

A esta altura, a epidemia estava em estágio inicial, mas os resultados dos poucos cuidados apareceram logo adiante. No dia do confronto interestadual (12/10/1918), a cidade registrou 12 enterros, número que passou de 1.000 em menos de duas semanas.

O Rio de Janeiro passou longe de ter controle sobre a epidemia. Não havia política de isolamento ou um projeto conciso do poder público para o controle da gripe. Muito menos para a retomada de qualquer atividade que fosse interrompida.

Um dia após o jogo entre São Paulo e Rio de Janeiro, as principais ligas da cidade realizavam suas rodadas. Provavelmente sem saber que seria a última rodada antes de um bom período de suspensão. Na semana seguinte a este domingo, a Liga Metropolitana e a Liga Suburbana decidiram pela suspensão dos jogos por tempo indeterminado.

O último grande evento esportivo ocorreu dia 20 de outubro, no prado do Jockey Club. A curva de mortes passava por uma escalada gritante. No mesmo dia, o Fluminense adiou o campeonato de tênis que iria promover. Enquanto isso, a Federação Brasileira das Sociedades do Remo promoveu o “Campeonato Brasil”. A justificativa era de que atletas de diversos lugares do Brasil encontravam-se já na cidade e haviam se preparado arduamente. Embora a entidade lamentasse ter que realizar a competição naquelas condições que nada combinavam com a prática do esporte.

Foto: Reprodução/Gazeta de Notícias (RJ), 28 out. 1918, p. 5.

Pairava sobre as discussões dos dirigentes de clubes e ligas o paradoxo de seguir com os esportes. O fenômeno estava atrelado à higiene e ao aprimoramento físico, mas instaurava-se um verdadeiro caos na saúde pública. Aliás, esta contradição foi até mesmo explorada pela publicidade da loja “Casa Sportsman”. Sob custódia do “sábio médico Dr. Varzim”, defendeu que o banho de mar seria uma alternativa para quem tivesse a espanhola, é claro, adquirindo os itens de banho na Casa Sportsman.

Pouco mais de 100 anos separam a epidemia de espanhola da nossa atual, mas o que não faltam são as soluções do mais alto grau de ignorância em ambas.

Se era de praxe encontrarmos escalações, crônicas e tabelas nas páginas esportivas dos periódicos, da segunda metade de outubro em diante o que se viu foram notas de pesar, homenagens, notícias de atletas vitimados e clubes fechados.

No Jornal do Brasil (14/10/1918), dois dias após o jogo entre São Paulo e Rio de Janeiro, chama a atenção uma matéria intitulada “O scratch carioca e a influenza”, que menciona jogadores que estavam doentes. Os zagueiros Píndaro e Moura viajaram para São Paulo já doentes, situação que piorou durante a viagem. Os dois jogadores saíram do “trem direto para a cama”. O jornal também destaca o “exemplo extraordinário de dedicação” de  atletas como Monti, Beregaray, Petiot e Walfare, que mesmo enfermos foram a campo.

A continuação das atividades esportivas tornou-se insustentável. As ligas de futebol aprovaram a suspensão, na semana seguinte ao dia 13 de outubro. Havia tanto a precaução quanto o fato consolidado de diversos atletas estarem enfermos.

Foto: Reprodução/O Paiz (RJ) 31 out. 1918, p. 10.

Todavia, a paralisação dos esportes não foi unanimidade. O Derby Club, que promovia corridas de turfe, seguiu com funcionamento parcial. Deu uma pausa nos dias que orbitavam o momento em que a epidemia atingiu seu pico. Diferente do futebol, que estava paralisado por completo, o turfe tinha eventos pontuais, que conviviam com constantes cancelamentos de reuniões e provas.

Por exemplo, na edição de “O Paiz” de 21/10/1918, uma crônica referente à corrida do dia anterior destaca uma paisagem “tristonha, chuvosa e sem a menor animação devido ao momento que atravessamos”. No mesmo periódico, no dia 31 de outubro, há a seguinte manchete: “Os galopes têm estado frouxos…”. Observava o desânimo no hipódromo, embora os treinamentos estivessem acontecendo. Em meio às incertezas destes dias tensos de outubro, podemos observar as mais diversas decisões sendo tomadas.

Foto: Reprodução/O Paiz (RJ), 26 out. 1918, p. 6.

Já no início de novembro, o número de mortes por dia começou a cair no Rio de Janeiro. Neste cenário, a maioria dos clubes retornou aos treinamentos – mesmo que os campeonatos oficiais ainda estivessem paralisados por tempo indeterminado. A secretaria da Liga Metropolitana, que se encontrava fechada em função da epidemia, voltou a funcionar. Deste modo, trazia a expectativa do retorno das partidas de futebol.

Entretanto, não foi um processo fácil. A cidade ainda se recuperava e estava longe das condições ideais de saúde. Por outro lado, não eram raras as cobranças sobre os dirigentes da Liga para retomar a tabela.

Da mesma forma que reuniões da direção do Derby foram canceladas em razão dos membros enfermos, a Liga Metropolitana passou pelo mesmo drama. O Paiz registrou no dia 23/11/1918 que na última reunião apenas 10 clubes em um universo de 27 mandaram representantes para o encontro que definiria o retorno dos jogos.

Foto: Reprodução/O Paiz (RJ), 1 dez.1918, p. 8.

Aliás, a imprensa não poupou os dirigentes da Liga e foi extremamente crítica com a demora do retorno. Neste caso, podemos ver o modo como dois veículos de imprensa trataram a questão.

O Paiz publicou ao longo do mês de novembro diversas notas cobrando vontade dos membros do conselho da Liga. Desconsiderava qualquer tipo de insegurança em meio à epidemia. Apontava a falta de vontade de trabalhar como principal motivo para o futebol encontrar-se parado. Até mesmo acusaram os dirigentes de sofrerem de “preguicite”. Na edição de 1º de dezembro, chegaram a publicar até um anúncio em tom irônico, procurando por representantes de clubes responsáveis, pagando-se bem.

Foto: Reprodução/Correio da Manhã (RJ) 8 nov. 1918, p. 5.

Já o Correio da Manhã, em nota publicada dia 8 de novembro, posiciona-se a favor da cautela. Colocava ponderações até mesmo sobre a volta dos treinos. Argumentava que não havia falta de calendário. As partidas podiam ser realizadas ao pôr do sol e que o Campeonato Sulamericano estava adiado.

Ah, por falar nele, o Sulamericano de 1918…

Somado a todos eventos esportivos que sofreram com a gripe espanhola, o Sulamericano chamou a atenção pelo caráter internacional e pela grandeza que o evento representava. A expectativa de receber o evento no dia 10 de novembro era grande para os brasileiros. Mas o desejo foi frustrado pela questão sanitária do Rio de Janeiro.

Foto: Reprodução/Correio da Manhã (RJ) 8 dez. 1918, p. 6.

Foi neste cenário que os países participantes trocaram telegramas para resolver o desfecho que teria a competição. Não demorou para que o Brasil, por meio da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), notificasse as outras associações sobre seu desejo de adiar a competição para, pelo menos, março de 1919.

Os motivos eram óbvios. Além do mais, seus atletas não estavam na condição física ideal. A comunicação entre brasileiros, argentinos, chilenos e uruguaios nos revelou alguns ruídos, conflito de interesses e também solidariedade.

A tensão logo se deslocou para a resposta que os países participantes dariam à solicitação brasileira. De pronto, os argentinos solidarizaram-se com o Brasil e colocaram-se de acordo com qualquer que fosse a decisão tomada. Posição que na imprensa foi tratada como uma forma de “homenagem” ao Brasil, dada a sensibilidade.

Da mesma forma, os chilenos adotaram postura parecida com os argentinos: lastimaram a situação do Rio de Janeiro e se colocaram de acordo com a decisão que o Brasil fosse tomar, embora pontuasse as implicações que isso traria à seleção do Chile: confronto de calendário, aumento de gastos, entre outros problemas.

O Paiz publica reportagem sobre a volta do campeonato carioca. No mesmo dia em que se celebrou missa em homenagem aos sócios falecidos vítimas da epidemia, o Fluminense jogou, venceu e garantiu o título de 1918. Foto: Reprodução/O Paiz, 9 dez. 1918, p. 6.

No entanto, a situação foi um pouco mais tensa com a Associação de Futebol Uruguaia. Além da demora para responder os brasileiros, partiu dos uruguaios a ideia de realizar o torneio em seu território e haver uma outra edição em 1919, no Brasil. Alegavam que eram o único país que no momento tinha as condições necessárias para receber o Sulamericano.

Entretanto, a ideia acabou não sendo muito bem recebida no Brasil e, mediante a solidariedade dos outros países, o torneio não aconteceu em 1918. No dia 1º de dezembro, o jornal O Paiz publicou uma circular enviada pelo diretor da Confederação Sulamericana de Football, o senhor Hector Gomez.

João Cantuária (São Christovão) e Archibald French (Fluminense) jogaram juntos pela seleção carioca em 1917 e um ano depois foram vítimas da gripe espanhola. Foto: Reprodução/Revista de Theatro e Sport, 2 nov. 1918, p. 8.

Na circular, o presidente justificou-se alegando que em nenhum momento quis ferir o direito dos brasileiros de receberem o campeonato. Mas que, dada a corrente crise e em respeito às delegações argentinas e chilenas que já estavam preparadas, realizar em Montevidéu seria uma boa alternativa.

Porque no buscar la solucion de este serio problema financeiro en la realizacion del Campeonato en otro paiz?”. Para Hector, o problema a ser resolvido era prioritariamente financeiro. Colocava em segundo plano a questão da saúde e condicionamento dos atletas brasileiros.

Ainda assim, após o apelo, deixou que a decisão final fosse da CBD. O Sulamericano de futebol ocorreu então em maio de 1919, conforme planejaram os brasileiros.

A alegria e o luto

Enfim, resolvida a turbulência internacional, no final do mês de novembro com a situação mais amena, foram aprovadas as voltas das ligas de futebol no Rio de Janeiro. Os periodistas enfim celebravam o retorno do futebol, depois de muita cobrança sobre os dirigentes. Ressaltavam a paixão do carioca pelo esporte bretão e a alegria de poder voltar às arquibancadas.

Pouco antes das partidas oficiais da Liga Metropolitana, realizou-se um amistoso entre Flamengo e Corinthians, no dia 1º de dezembro, destacado pela alegria da torcida carioca que poderia voltar a preencher o vazio que a ausência do futebol provocava.

Toda essa vibração, no entanto, convivia com a dor das perdas e com as homenagens dos clubes aos seus sócios vitimados. Ao lado de uma crônica sobre algum jogo, algum anúncio de missa. Assim, a cada final de semana uma liga voltava à atividade.

A Liga Suburbana de Futebol foi a primeira, voltando dia 24 de novembro. No final de semana seguinte, dia 1º de dezembro, retomou a Associação Athletica Suburbana. Por fim, dia 8 de dezembro, a volta da prestigiada Liga Metropolitana, que cumpria sua última rodada. 

Após sagrar-se campeão, o Fluminense lotou a Matriz da Candelária para prestar exéquias aos seus sócios que sucumbiram à gripe. Ao todo, foram 23 vítimas fatais entre dirigentes, sócios e jogadores, incluindo o ídolo Archibald French.

Aspectos do estádio da Rua Paysandu, no amistoso Flamengo x Corínthians, que marcou a volta do futebol ao Rio de Janeiro. Foto:Reprodução/O Malho, 7 dez. de 1918, p. 30.

Em outros casos, a Federação do Remo regularmente prestava homenagens nos jornais. Solicitou que os clubes filiados enviassem o nome de todos que morreram em decorrência da gripe. No Clube de Regatas Flamengo, por exemplo, oito “sportsman” perderam a vida.

Atualmente, o que temos latente é a discussão do volta ou não volta do futebol em boa parte do mundo. No Brasil, um dos lugares mais críticos da atual pandemia, cada vez mais se realizam esforços para achar uma maneira de retornar as partidas. Alguns clubes já até retornaram treinamentos.

Talvez, o momento seria ideal para treinarmos o exercício da reflexão. Para que não tenhamos mais missas lotadas como em 1918. E para que não precisemos homenagear nossos ídolos, ao menos não desta forma.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Matheus Donay

Historiador e mestrando em História pela Universidade Federal de Santa Maria. Além do futebol, pesquisa o truco, a tava e outros esportes radicais do sul da América.

Como citar

COSTA, Matheus Donay da. Gripe Espanhola e Futebol no Brasil (Parte 2): Rio de Janeiro. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 58, 2020.
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