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Esporte Gay ou Esporte LGBT? Eis uma questão!

Wagner Xavier de Camargo 10 de junho de 2018

No final de semana do feriado prolongado de Corpus Christi houve, em consonância com a programação da Parada do Orgulho LGBT+ que ocorre anualmente em São Paulo, a 2ª Taça Hornet de Futebol da Diversidade. Trocando em miúdos, uma espécie de Copa brasileira de “futebol gay”, como estão chamando os meios de divulgação. Participaram dela cerca de 14 times de futebol amador, de variados espectros na definição de gênero e sexualidade, que defendem “visibilidade” para suas práticas esportivas e menos homofobia, transfobia e discriminação no mundo esportivo.

Apesar de ser apenas a segunda experiência do tipo (a 1ª Taça ocorreu em fins de 2017), tal campeonato foi bem sucedido no intuito de agregar participantes interessados, pelo menos a priori, no universo futebolístico. Não estavam presentes apenas os vários grupos de jogadores, porém uma grande torcida para assisti-los. Em que pese tudo isso aparentemente ter ares de “aceitação da diversidade”, o fenômeno é mais complexo e merece algumas reflexões. Muitas pessoas (inclusive participantes do evento) denunciaram amplamente nas redes sociais a presença dominante de homens cisgênero (que aceitam o gênero a eles designado no nascimento), homo-orientados, brancos, belos e musculosos. Para elas, a questão não era somente a presença massiva destes sujeitos, mas a reprodução que faziam de preconceitos tão comuns no esporte convencional sobre outros corpos e sexualidades. Na visão de quem critica, deveria ter mais “esporte LGBT” e menos “esporte gay”. Ou seja, maior aceitação e promoção da visibilidade de outros sujeitos sexuais, dentro do espectro da famigerada sigla LGBT+, e não um domínio exclusivo gay.

BeesCats
BeesCats, vencedores da 1ª Taça Hornet. Foto: Marcio Rolim/Divulgação.

O esporte praticado por pessoas não vinculadas ao regime de sexualidade heteronormativa (no qual a heterossexualidade é a norma seguida) surgiu no início dos anos 1980, em terras estadunidenses, como reivindicação de grupos minoritários que se sentiam excluídos do mundo esportivo mainstream (ou convencional). O idealizador dos Gay Olympic Games foi Thomas Waddell, um ex-atleta do decatlo, que havia participado dos Jogos Olímpicos do México, em 1968. Para Waddell, um mundo livre de perseguições sexuais também deveria ser almejado e defendido dentro do esporte (WADDELL & SCHARP, 1996).

A proposta vingou e os então Gay Games viraram uma marca (hoje global) de competições multiesportivas. Cada edição quadrianual agrupa, pelo menos, cerca de 10.000 atletas competindo em várias modalidades (SYMONS, 2010). Com o passar do tempo, a prática tornou-se uma expressão do “esporte gay” ou gay sport, como ainda é popularmente conhecido nos EUA. A apropriação do evento por parte de grupos de homens cisgênero, brancos, homossexuais e musculosos foi ampla e virou uma marca registrada do mesmo. Infelizmente a invisibilidade de outros sujeitos sexuais é comum, inclusive mulheres lésbicas, pessoas transgênero e mesmo pessoas não binárias (gender queer), algo já apontado em minha pesquisa sobre esta competição esportiva (CAMARGO, 2012).

Folder-propaganda dos Gay Games de Colônia-2010, Alemanha, distribuídos no fim na edição de Chicago-2006. Arquivo pessoal
Folder-propaganda dos Gay Games de Colônia-2010, Alemanha, distribuídos no fim na edição de Chicago-2006. Foto: Arquivo pessoal.

De um lado, precisamos denunciar o uso do slogan “LGBT+” feito por grupos ou empresas vinculados ao mercado para fins de vender determinado evento, seja ele esportivo ou não. A defesa da presença de outros sujeitos como lésbicas, homens e mulheres transgênero ou transexuais, bissexuais, intersexo e afins deve ser uma constante quando se fala em algo “LGBT+”. Se qualquer participante presente num evento desses não se sentir contemplado/a, então há aí um equívoco e uma incongruência entre o que é ofertado e os desejos subjetivos. O apelo à “diversidade” é compreensível no intuito de arregimentar pessoas para um campeonato que tem a intenção de se tornar visível. Porém, em se adotando tal mote deve-se, no mínimo, garantir que ele seja efetivado na prática e respeitado por todos/as. Afinal, o respeito à diversidade é salutar, inclusive, para o próprio usufruto e gozo da cidadania dessas pessoas!

De outro, é igualmente inteligível que grupos discriminados tentem conquistar uma luz sobre si, pois a visibilidade traz conscientização e, potencialmente, “inclusão” em áreas sociais não acessíveis. No entanto, é inadmissível que homens gays cisgêneros busquem reconhecimento à custa da exclusão e da discriminação contra pessoas trans, consideradas “fora do padrão” (muscular, de beleza ou mesmo de formas corporais). A luta pelo reconhecimento deles não legitima, em hipótese alguma, a exclusão de outros, muito menos a depreciação pessoal/sexual de outras minorias sexuais, seja no esporte ou na vida.

Portanto, a pergunta-título deste texto não é simples de ser equacionada e muito menos fácil de ser respondida – isso se considerarmos que ela seja plausível. Se pensarmos que não existe, em essência, um “esporte gay” ou expressões de “esporte LGBT+”, chegamos à conclusão que existem sujeitos LGBT+ que praticam esportes, assim como há mulheres que praticam futebol ou indígenas que fazem canoagem (e, nessa lógica, seria incorreto pensar em “futebol feminino” ou em “canoagem indígena”). Refletir dessa forma faz com que cheguemos à constatação de que a indagação sobre a existência de um “esporte gay” ou de um “esporte LGBT+” demarca visões distintas de mundo, que merecem ser analisadas com ponderação.

Foto: Equipe tailandesa de atletas transgênero. Campeonato Vôlei, Berlim-2009. Arquivo pessoal
Equipe tailandesa de atletas transgênero. Campeonato Vôlei, Berlim-2009. Foto: Arquivo pessoal.

 

Desculpem-me os entusiastas desta Taça, mas “diversidade” sexual e de gênero é algo que aí não se encontra. Sou mais favorável àquela experiência-piloto dos “Jogos da Diversidade de São Paulo”, que ocorreu ineditamente ano passado e da qual aqui tratei (CAMARGO, 2017). Lá houve espaço para múltiplas representações de masculinidade, feminilidade, transgeneridade e também para o “futebol gay”, se posso assim classificá-lo.

O aspecto positivo é que as experiências no mundo dos esportes por sujeitos LGBT+ tendem a crescer nos próximos anos, em todo o país. Homens gays cisgêneros no futebol necessitam levar em conta que suas vivências não são as únicas, nem modelos a serem seguidos. Além disso, há outras pessoas que habitam o cenário esportivo e que não somente querem assistir aos jogos, como também deles participar, da forma e do jeito que decidirem. Ou vamos construir a trajetória brasileira do esporte praticado por pessoas LGBT+ à semelhança do “esporte gay” norte-americano, excludente e preconceituoso?

Referências para consulta

CAMARGO, Wagner X. “Jogos da Diversidade de São Paulo”. São Paulo: LUDOPÉDIO, v. 96, n. 25, 2017. p. 01-06. Disponível em < http://www.ludopedio.org.br/arquibancada/jogos-da-diversidade-de-sao-paulo/>.

CAMARGO, Wagner X. Circulando entre práticas esportivas e sexuais: etnografia em competições mundiais esportivas LGBTs. 2012. 400 f. Tese (Doutorado). Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, 2012. Disponível em <https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/96147>.

SYMONS, Caroline. The Gay Games: a history. New York: Routledge, 2010.

WADDELL, Tom, SCHAAP, Dick. Gay Olympian: the life and death of Dr. Tom Waddell. New York: Alfred A. Knopf, 1996.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Esporte Gay ou Esporte LGBT? Eis uma questão!. Ludopédio, São Paulo, v. 108, n. 10, 2018.
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