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Jogos da Diversidade de São Paulo

Wagner Xavier de Camargo 25 de junho de 2017
Tenda de inscrição das modalidades numa das entradas do Ibirapuera. Bandeira do arco-íris ao fundo. Fonte: acervo Wagner Camargo
Tenda de inscrição das modalidades numa das entradas do Ibirapuera. Bandeira do arco-íris ao fundo. Fonte: Wagner Camargo.

No dia último dia 17 de junho, pela primeira vez, a cidade de São Paulo pode ver um dia todo de eventos esportivos direcionados ao público LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, pessoas transgêneros e outros). Os designados “Jogos da Diversidade de São Paulo” reuniram mais de 350 praticantes de esportes em torno de algumas modalidades como natação, futsal, voleibol e “gaymada”, um jogo de queimada misturado a música e dança. A realização foi do CDG Brasil ou Comitê Desportivo LGBT, que contou com apoio da organização central da Parada do Orgulho LGBT para locar algumas instalações do Parque Ibirapuera e realizar o evento.

Não foi a primeira vez que houve a tentativa de organização desses Jogos. O próprio CDG Brasil, que foi criado em 2008, tem se esforçado muito, ano após ano, para que algo assim acontecesse. A proposta é que esportistas ou atletas representantes do coletivo LGBT+ se expressem esportivamente, com vistas a celebrar a diversidade sexual a partir de múltiplas identidades de gênero, combatendo a homofobia e demonstrando que o esporte não é monoliticamente heteronormativo, ou baseado numa lógica exclusiva da heterossexualidade como norma. Estes corpos que jogam, chutam, saltam, nadam ou mesmo dançam não apenas são representativos da “diversidade”, como problematizam o fenômeno esportivo, muitas vezes considerado branco, burguês, cristão, elitista e, sobretudo, binário (apenas masculino e feminino).

Como pesquisador de eventos esportivos desenvolvidos para o público LGBT+ há mais de uma década, o que pude acompanhar de perto em São Paulo foi o ineditismo de um evento muito mais interessante do que as Olimpíadas organizadas pelos Gay Games ou qualquer outro campeonato que reúna uma pequena elite de atletas gays, lésbicas e trans competindo em rendimento esportivo.

Observei com curiosidade um grupo homens-trans jogando futsal com um time gay carioca, pois muito mais do que disputas pela bola, ali naquele jogo estavam envoltas outras questões, mais visíveis ou mais invisíveis, como o tensionamento de categorias binárias do esporte e mesmo a co-existência de estéticas corporais distintas das “normativas”. Se o pessoal é político, o que vi nas contendas desse grupo de futebolistas homens-trans foi a explicitação de uma forte presença política num espaço público, à luz das inúmeras e frenéticas câmeras televisivas, e aos olhos de expectadores/as inadvertidos/as. Tais jogadores mostraram a mim e a todos/as, que podiam existir nos espaços esportivos como naquela quadra, numa tarde agradável de outono, oferecendo um tenso e interessante jogo de futsal. E que isso pode ser regra e não a exceção!

Jogo de futsal no ginásio 2
Jogo de futsal no ginásio 2. Bandeira do Orgulho Trans ao fundo. Fonte: acervo Wagner Camargo

 

Pude presenciar, igualmente, nos inúmeros jogos de voleibol de um dos ginásios, grupos mesclados, os quais continham corpos que desafiavam as classificações de gênero por todos os ângulos. À semelhança do que escrevi certa vez sobre mulheres-trans voleibolistas, corpos desgenerificados (ou desidentificados com o gênero a eles atribuído) que se mesclam e propõem habitar espaços esportivos convencionais, colocam em xeque corpos heterossexuais, hábeis e hegemonicamente masculinos, no que diz respeito ao questionamento tanto da supremacia dessas existências quanto da eficácia que se autoimputam nas práticas esportivas.

A gaymada, por sua vez, um jogo-atividade desenvolvido em alguns espaços da capital paulistana há certo tempo, trouxe uma dimensão que transpassou todas essas que abordei anteriormente. Com seu formado parecido ao jogo de queimada escolar, mas numa dimensão lúdica que trazia uma espécie de apresentador no microfone e músicas animadas ao fundo, a gaymada também era um jogo aberto, onde cada um/uma que assistia poderia simplesmente entrar e participar. Para além dos clichês associados à atividade por meio de alguns/algumas participantes que se travestiam (e por que não?), o jogo de gaymada expandia nosso entendimento do que o social é feito e de quem somos nós, de fato: uma multiplicidade de distintos corpos, com enunciações diferentes de gênero, com orientações sexuais múltiplas e modos de se vestir ou portar imprevisíveis ou incomuns. A gaymada sintetizou o acolhimento, a aceitação, celebrando a convivência pacífica entre diferentes em prol da diversão.

Jogo de gaymada ocorrendo em parte da pista de atletismo do Ibirapuera. Fonte: acervo Wagner Camargo
Jogo de gaymada ocorrendo em parte da pista de atletismo do Ibirapuera. Fonte: Wagner Camargo.

O evento aconteceu no final de semana prolongado da “Parada do Orgulho LGBT” da cidade de São Paulo porque, no limite, participa das comemorações acerca da “Revolta de Stonewall”, um marco da liberação sexual dos anos 1960 ocorrido nos EUA. A revolta generalizada do público “marginalizado da comunidade gay” contra as batidas policiais no Stonewall Inn, em Nova Iorque, em junho de 1969 gerou uma organização sem precedentes de grupos políticos da sociedade civil em todo o mundo pela luta dos direitos LGBT+ e, desde 1970, as “Paradas LGBT” são representativas disso.

O esporte não pode estar aleijado dessas questões políticas mais circunscritas, porque, de fato, elas não dizem respeito apenas aos grupos envolvidos. Além disso, o esporte enquanto instituição deve ser questionado em seus pressupostos por parte desses sujeitos. Não se trata, obviamente, de transformar os Jogos da Diversidade em espaços exclusivos de prática LGBT+, numa tentativa de “proteger” este grupo, mesmo porque a questão não é segregar, mas sim mostrar a presença política de outros corpos, sexos e gêneros nos mais variados espaços esportivos.

Se houver apoio institucional das esferas governamentais em anos vindouros e mesmo suporte da iniciativa privada, defendo que tais Jogos da Diversidade continuem atrelados à realização da Parada paulista, talvez o maior evento do tipo no mundo. E por dois motivos simples: eles proporcionam uma visibilidade ímpar de “gêneros divergentes” e de corpos dissonantes em relação à matriz heteronormativa (o que contribui para o questionamento de nossas certezas), além de postularem que o esporte pode ser um espaço de co-existência e participação de muitos sujeitos “não brancos”, “não heterossexuais” e considerados marginais.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Jogos da Diversidade de São Paulo. Ludopédio, São Paulo, v. 96, n. 25, 2017.
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