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Antonio Jorge Gonçalves Soares

Equipe Ludopédio 14 de agosto de 2015

Referência importante no campo dos estudos sociais do esporte, Antonio Jorge Gonçalves Soares é doutor em Educação Física pela Universidade Gama Filho e realizou pós-doutorado na Universidade do Porto-FADE-UP. Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem se dedicado a pesquisas sobre a educação do corpo em contextos de escolarização. Suas pesquisas de mestrado (Futebol, Malandragem e Identidade) e doutorado (Futebol, raça e nacionalidade: releitura da história oficial) voltaram-se à temática futebolística. Publicou, em parceria com Ronaldo Helal e Hugo Lovisolo, os livros A invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria (Ed.Mauad) e Futebol, Jornalismo e Ciências Sociais: interações (Eduerj).

 

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Antônio Jorge Soares. Foto: Sérgio Settani Giglio.

 

 

Primeira parte

Qual sua primeira lembrança com futebol?

Minha infância. Eu gostava de jogar futebol. Não tinha esperança de ser jogador, mas para mim tinha muita importância jogar na rua, no campo do Mavilis F.C., clube de uma fábrica de tecidos que remonta à ideia do futebol no Brasil. Muitos clubes eram clubes de fábrica. Bangu e Andarahy eram clubes de indústria. Aquela ideia de que o futebol nasce na classe operária é uma versão pouco tratada. A Fátima Antunes trabalhou esse tema, mas geralmente os estudos falam mais sobre o começo do futebol entre as elites no Brasil, e esquece que rapidamente as fábricas montaram suas equipes. O Mavilis é um destes clubes, fundado logo no início do século XX, não lembro quando exatamente. Morava no Caju, um bairro na zona central do Rio de Janeiro, da zona portuária, bem colado à Baia de Guanabara, relativamente próximo a São Cristóvão. É um pouco contramão, mas perto do centro. Meu sonho era jogar na equipe do Mavilis e eu cheguei a jogar como ponta-esquerda, às vezes jogava como lateral. Organizei equipes para disputar o Campeonato de Peladas Mário Filho. Arranjei financiamento com uma empresa de navegação para a qual o meu prestava serviços. Eles financiaram as camisas de futebol. Fazíamos vaquinhas, íamos aos comerciantes do bairro, pedíamos contribuições para comprar os jogos de camisas ou para montar campeonatos.

Então, tenho muitas lembranças de futebol. Sonhava e imaginava como iria chutar. Lembro que numa pelada que eu jogava na Quinta da Boa Vista certa vez eu fiz um gol de bicicleta. Isso nunca saiu da minha cabeça. Cheguei a participar da formação do infanto-juvenil e do processo de seleção para jogar pelo Fluminense. Em um dos campeonatos que participei, não lembro qual especificamente, joguei por uma equipe de um clube do subúrbio num torneio de eliminatória simples e nós chegamos a disputar um jogo contra o Fluminense no Estádio de São Januário. Tomamos uma lavada. Mas, naquele jogo, o olheiro do Fluminense selecionou quatro jovens da nossa equipe: Edson, Pinga, eu e acho que o quarto não foi. Começamos a treinar nas Laranjeiras. Nessa época, o filho do Garrincha, que não vingou no futebol, estava nessa equipe ou na equipe de cima. O Edinho jogava na equipe de cima, no juvenil, e nós jogávamos no infanto-juvenil. Claro, éramos reservas. Fizemos vários treinamentos durante dois meses. O problema é que saíamos do Caju, em ônibus cheios para ir a Laranjeiras no final da tarde, pois os treinos ocorriam à noite. E o que acontecia? Chegava lá e batia a cara na porta: “não vai ter treino porque o técnico Farias resolveu que hoje não iria ter”. E ficava um bando de adolescentes parado, um plantel de cerca de quarenta garotos. O que aconteceu depois? Já estava com uns dezesseis anos, comecei a achar que era muito esforço. Abandonei e decidi não fazer mais isso. O Pinga continuou mais um mês e o Edson também.

Depois disso passei a jogar mais pelada, joguei futsal numa equipe chamada Zico 10 de Ouro. O Zico patrocinou com material. Pena que tenho pouca iconografia desse período. Raul, um cara magrinho e que jogou muita bola, era o treinador. Um rapaz, que era filho de dono de restaurante, acabou agitando isso, acabamos entrando no campeonato dos clubes portugueses e ficamos numa boa colocação. Disputamos finais de campeonatos. Eu era um jogador médio. Mas andamos por tudo quanto é lugar com chuteira debaixo do braço. Nunca fiz peneira, só recebi um convite. Acho que fui uma vez numa peneira no São Cristóvão, mas acabou chovendo muito. Isso é uma coisa interessante do futebol e tem a ver com o meu atual projeto: estudar conciliação de atletas. Não sei se você sabe, mas temos estudado, desde 2007, a dupla carreira do jogador de futebol e de outras modalidades, na escolarização e no esporte. Como é que eles conciliam esporte e escola básica, pois é o mesmo período de formação. O futebol de campo, principalmente, depende do clima. E como iluminar o campo é muito caro, os treinamentos ocorrem no horário da escola. Por ser no horário da escola, cria-se uma série de limites e problemas. Uma cidade que tem um clima muito variável acaba, de certa forma, criando uma falta de rotina. Se o treino fosse de noite ou fim de tarde, pegaria os meninos que já passaram pela escola e depois vão jogar bola. Algo que ocorre na Espanha e Portugal. Em Portugal por outro motivo, mais tradicional. Mas em muitos países tem muito a ver com a escola. Portanto, os clubes funcionam após a escola. Não existe esse negócio de escola de turno. Isso acontece aqui. Escola é escola. A criança entra de manhã e sai no meio da tarde.

Essas são minhas lembranças de futebol. Tenho muitas. Inclusive, comecei a trabalhar por causa do futebol. Meu primeiro trabalho como escriturário foi numa firma, Videl Comércio e Construções. Durou um ano. Depois entrei na faculdade de Educação Física. Meu chefe queria que eu fizesse faculdade e queria fazer jornalismo. Só que eu passei para Relações Públicas, alguma coisa assim, em uma universidade secundária, longe. Naquela época o vestibular era unificado. No meio do ano tinha um vestibular para a Universidade Gama Filho, que já era uma faculdade de expressão no campo da Educação Física. Tinha inclusive atletas universitários. Eu não queria fazer, mas meu chefe foi lá e fez minha inscrição. Passei e comecei a fazer a faculdade. Mas eu jogava pelada e campeonato por essa firma. Depois passei basicamente a jogar futebol de salão. Jogava futebol na faculdade. Eu fui um peladeiro regular. Por volta dos quarenta anos jogava três peladas por semana. Peladas organizadas, em campos de society, quando começaram a surgir os campos de grama sintética, há cerca de quinze anos. Começaram a proliferar campos e eu pagava para jogar três peladas por semana. Eu estava voando naquela época e não havia melhor atividade física do que essa.

E sou vascaíno. Mas posso dizer que até os quinze anos o futebol refletia um pouco da minha personalidade. Eu ficava muito tenso durante os jogos. Eu ficava rezando para o time ganhar. Eu ia para o Maracanã e sofria. Eu assisti jogos na década de 70 e início dos anos 80. Depois, na minha fase adulta, raramente vou ao campo. Quando vou, faço somente para acompanhar algum amigo que está no RJ. Assisto mais futebol quando viajo. Quando estou em Santa Catarina vou com o Alexandre Vaz no estádio da Ressacada ver o Avaí. Como torcedor, já não estava ligando muito por volta dos dezoito anos. Se você perguntar qual era a escalação do Vasco quando eu era adolescente, eu digo. Hoje não faço a mínima ideia. Cheguei a jogar pelada com o Carlos Germano quando ele foi barrado pelo Eurico Miranda. Ele jogava pelada com a gente em Jacarepaguá.

Nesse sentido, ter jogado em São Januário foi uma coisa muito marcante?

Nem tanto. Foi legal. O nome da equipe que a gente representou era Marabu. Um time de Piedade. Eles não tinham um time para participar do campeonato e então pegaram a base da nossa equipe de futsal. Nós jogamos pelo Marabu. Foi legal jogar em São Januário, mas lembro que o campo era horrível. A ponta esquerda tinha um desnível, lembro claramente. Nessa época o time do Vasco tinha Andrada, Fidelis, Brito, Moisés, Alfinete, Almir, Ademir, Zanata, Jorginho, Roberto e Luis Carlos. Era o time de 1977. Todo mundo queria imitar o Zanata. Pensando a partir de Marcel Mauss, a “imitação prestigiosa”  é perfeita no campo de futebol. O Zico batia aquelas faltas girando o pé e todo adolescente da minha época tentava fazer aquilo. O Rivelino dava o drible elástico e todo adolescente ficava imitando por horas o drible. Alguns jogadores andavam com perna arcada e os jovens andavam assim porque achavam que era o jeito de andar do jogador de futebol. Você tinha que dominar determinada gestualidade corporal, principalmente aquela relacionada à figura do atacante. O Luis Carlos jogava com meia baixa e todos queriam jogar com meia baixa. É interessante essa incorporação de técnicas corporais. Incorpora-se não só a gestualidade no manejo com a bola, mas se incorpora cabelo, estilo etc. Algo que também pode ser visto hoje.

A carreira acadêmica já era seu objetivo na época da faculdade?

Não. Fui fazer carreira acadêmica por dois motivos. Eu achava fantástica a possibilidade de trabalhar de shorts (risos). Eu tinha uma tremenda aversão a roupas formais, como ternos, que hoje em dia eu até que acho legal. Todo mundo fala que o clima do Rio de Janeiro está muito quente. Na minha infância toda não tinha ar condicionado em casa. Éramos de classe média baixa. Tivemos ventilador de teto em casa depois de muito tempo. Esse negócio de andar de shorts, trabalhar de bermuda, achava fantástico. Lembro que quando comecei a faculdade eu ainda trabalhava na firma e pediram para que eu gerenciasse uma loja de motos. No meu primeiro ano de faculdade gerenciei uma loja de motos chamada Bandeira Auto Peças na Tijuca. Tinha entre dezoito e dezenove anos. Um professor de Educação Física tinha uma RD 350, uma moto assassina, a moto da época. Ele deixou a moto para consertar, mas deu uma série de problemas. Ele deixava a moto e ia trabalhar na Tijuca. Ele chegava de mochila, bermuda, tênis importado. Esses símbolos são interessantes. Pensei: “é isso que eu quero”. Um trabalho relax.

Quando entrei na faculdade fui um bom aluno em anatomia e me interessei muito por treinamento esportivo. Não tinha TCC, mas tínhamos o Estágio Três. Uma espécie de trabalho de conclusão de curso que não era obrigatório. Meu trabalho, junto com um colega, foi medir a capacidade aeróbia dos alunos da escola onde eu já fazia estágio tentando estimar o VO2 através do Teste de Cooper. Mas meu objetivo era ser treinador. Trabalhar com futebol, mas na preparação física. Lembro que tinha um treinador de goleiros, o Travassos, capitão da Marinha. Meu primo era da Marinha e falou para eu procurar o Travassos. Nessa época eu tinha feito um curso de treinamento com Jorge de Hegedus, um famoso teórico argentino do treinamento esportivo na América do Sul. Ele foi inclusive o preparador de clubes argentinos e da seleção argentina. Na época ele dizia: “Não adianta. Eu botava meus atletas para correr longas distâncias. Mas dentro de campo eles morriam. Não consigo entender isso”. O estudo revela que o sistema energético utilizado é outro. Ele mostrava que tinha que trabalhar com treinamento intervalado, piques curtos, que reproduzisse as valências físicas utilizadas no futebol. Com tudo isso na cabeça fui lá procurar o Travassos. Ele mandou voltar uma segunda vez. Eu voltei. Ele disse: “Vou ter que falar com o diretor para ver se pode”. Era uma coisa fechada. Abrir a porta e o ambiente do futebol é uma coisa muito difícil. Quem não foi jogador de futebol tem dificuldade para entrar no campo. Eu cheguei com todas as teorias frescas na cabeça. Mas o Travassos foi me enrolando, porque ele era amigo do meu primo. Eu saquei o que estava acontecendo e então não fui mais. Tentei durante uns três ou quatro meses. Ia lá, sentava na arquibancada, conversava comigo cinco minutos, mas sempre me enrolando. Eu estava lá para ser estagiário de graça, só queria aprender. Mas é um campo com muitos medos e inseguranças.

Nesse momento eu já estava trabalhando no Instituto Carrescia, pois eu fui fazer uma colônia de férias, chegava no horário, e então assumi a recreação do Carrescia. Acabei montando minha carreira no Carrescia. Em 1985 fiz concursos públicos para professor, após ter me formado em 1984. Assumi em 1985 a matrícula no Rio de Janeiro. Ao assumir a matrícula, não tinha vagas nas escolas do local que eu passei. Então fui trabalhar na coordenação da Educação Física. Mal sabia o que era mestrado nesse momento. Mas teve um divisor de águas na minha vida que foi a professora Vera Lúcia da Costa, minha professora de prática de ensino. O curso de Educação Física, apesar de ótimo, com excelentes professores, era basicamente apostilado. A Gama Filho tinha apostilas. Raramente estudávamos na biblioteca. A professora Vera é um divisor de águas naquele curso porque ela nos coloca para estudar Educação Física Escolar e desenvolvimento psicomotor. Lemos o livro do Manoel Tubino sobre treinamento esportivo. Mais ou menos nesse período que consegui a carteira de registro provisório de professor no MEC. Você podia ser contratado como professor num registro provisório. Nesse momento a Vera nos fez estudar, ler o livro dela e tudo o que estava sendo publicado. Quando passei no concurso estadual, conversando com Liliane de Carvalho, da coordenação geral de Educação Física do Rio de Janeiro, ela me levou para trabalhar com essa equipe. Trabalhei durante um ano, mas o nosso coordenador assumiu uma posição política correta e pediu demissão do cargo. Então fomos obrigados a arrumar uma escola. Novamente me encaminhei para uma prática de Educação Física que iria requerer estudos. Fui para o Colégio Estadual Júlia Kubitschek e trabalhei com uma modalidade de ensino chamada Adicional Noturno. O Adicional era um pós-médio das normalistas de especialização para trabalhar com educação infantil, como pré-escola e jardim de infância. Fui obrigado a estudar o que tinha de elementos que justificassem trabalhar com práticas motoras. Fui estudar psicomotricidade e outras questões que embasavam o trabalho com crianças até seis anos.

Nesse mesmo período, eu tinha uma amiga, Eliane, infelizmente faleceu de câncer, que comentou sobre a seleção de mestrado da Gama Filho. Eu, como ex-aluno da Gama Filho, não fazia a mínima ideia de que a universidade tinha mestrado nessa época. Eliane falou: “Vamos fazer a prova de mestrado na Gama Filho”. Respondi: “Não quero gastar dinheiro com isso”. “Mas não é caro, é barato”. E realmente era barato. O professor Tubino era um formador de campo e ele pensava que o mestrado não era para dar lucro à instituição. Fui fazer a prova sem ter mínima esperança de passar. Para você ter ideia, nem me inscrevi. Quem me inscreveu foi a Eliane. Fui entregar a documentação e fizemos a prova. Eu passei e ela não passou. Eram aqueles mestrados longos, de quatro anos. Acredito que passei alguns meses da marca dos quatro anos quando fiz o mestrado. Então, eu me encaminhei para a carreira acadêmica por puro acidente.

Por que e como você definiu que o futebol seria sua temática de pesquisa e estudo?

Um professor foi muito importante no curso de mestrado da Gama Filho. Claro, quem olhar minha linhagem acadêmica vai perceber que sou um produto da formação do professor Hugo Lovisolo. Mas tinha um professor que trabalhava com metodologia de pesquisa que foi muito importante na Gama Filho, o professor Sebastião Votre. Ele vinha da área da Linguística e trabalhava muito com pesquisas qualitativas, uso de entrevistas, montagem de instrumentos. Naquela época, montar uma pesquisa exigia uma pergunta e um instrumento. O Votre tem uma tradição muito empírica. É um valor que eu tenho até hoje: quais são os dados que você tem, de que lugar você está falando, como construiu esses dados. Isso era muito importante naquele momento. E o Votre começou a cobrar. Não existia esse negócio de linha de pesquisa, mas sim áreas de concentração. A nossa era área da cultura, da administração e da performance. Embora ele estivesse na área na cultura, tinha que fazer disciplinas de outras áreas, algumas obrigatórias. O professor Votre exigiu que fizéssemos um projeto. Votre entra como um capataz para fazer com que nós terminássemos o curso. Tem que ter algumas pessoas que balizem isso. Hoje em dia nós temos seminários de projeto, seminários de tese. Temos alguns marcos que dizem: “Meu amigo, agora é sua vez”. O Votre saiu perguntando: qual seu problema de pesquisa? Eu disse: “Meu problema é financeiro, por isso estou aqui, para ver se melhoro a minha situação”. Eu não tinha objetivo de pesquisa. Trabalhava com educação física escolar. Mas não tinha linha de pesquisa, então você tinha que gerar seu projeto. Foi aí que minha memória afetiva com o futebol e minha memória juvenil de participação em igreja evangélica, porque minha mãe é evangélica, me levaram, por uma visão moral, a questionar isso que se chamava “malandragem no futebol”, e daí nasceu meu problema de pesquisa. Surgiu da minha formação protestante, moralista, e da minha memória futebolística. O Votre, como linguista, deu um bom incentivo. Ele é um sociolinguista, ele queria que tentasse compreender o significado dessa malandragem. Mas eu não fui orientado pelo Votre. Como naquele momento o Hugo Lovisolo tinha dado uma palestra sobre pesquisa participante, e depois convidado a ser professor do programa, fui incentivado a ser orientando do Lovisolo. O professor Hugo nessa época trabalhava no CPDOC/FGV e estava iniciando na UERJ. Batemos um papo no escritório dele e ele me deu vários caminhos. Mandou ler José Murilo de Carvalho, Roberto DaMatta e outros. Comecei a me apropriar dessas leituras, o que é possível ver que se reflete na minha dissertação de mestrado e no livro posteriormente publicado. Mantive uma espécie de estrutura metodológica que acumulei no contato com o professor Votre, entrevistei mais de quarenta jogadores de futebol, inclusive o Romário, ainda novinho na época – foi a segunda vez que pisei no campo de São Januário. Eu tinha toda uma estratégia, um roteiro, influenciado pela sociolinguística, apesar de não dominar a teoria. A pergunta detonadora ao jogador não falava em malandragem. Perguntava assim: “O que acontece dentro de campo que o torcedor não vê?”, “Muita coisa”, “Mas o que são essas coisas”. E ai começava o papo. Eu diria que quase 50% da amostra chegava a falar a palavra malandragem. Outros não falavam malandragem, mas diziam “provocação”, “irritação”, e que o jogador deveria resistir àquilo. Jogador tem que ter equilíbrio. Isso é um valor estruturante do discurso dos jogadores. Provocar e não ser provocado, saber provocar com o olhar. Na época apareciam expressões assim: “você puxa o calção, passa a mão na bunda, diz que vai dormir com a mãe dele. Tudo para o zagueiro desequilibrar o atacante, vice-versa, provocando a agressão. Não sei se isso mudou, mas essa foi uma fala corrente. E foi assim que nasceu aquela dissertação de mestrado em 1990, com quase 400 páginas, claro, com espaço duplo, que depois vira um livro fininho.

Como é olhar para essa dissertação 25 anos depois?

Pô, nem lembro. Vou ser sincero: pouco me releio. Estou com o desafio de publicar minha tese de doutorado há anos, mas sempre estou participando de projetos e ações, então eu me leio muito pouco, acho que é um defeito. Este trabalho do mestrado foi intenso na minha vida, com muitas renúncias. Fiz o mestrado trabalhando 40 horas por semana. Eu não sabia o que era férias desde que entrei em 1986 no mestrado. Nas férias eu tinha que entregar os trabalhos. Cada disciplina tinha um trabalho de curso. Eu não sabia o que era férias. Escrevi a dissertação no último ano do mestrado. Entreguei o primeiro copião para o Hugo em dezembro, escrito a mo, com os dois primeiros capítulos, ele devolveu em janeiro com observações: “tá bom, mas agora não mexe, vai para o próximo capítulo”. Ele não mandava reformar o primeiro, mas comentava os problemas de argumento e linguísticos. Só depois que escrevia o segundo voltava ao primeiro, pois o capitulo já estava mais frio. Hugo dizia assim: “Tem que ficar na gaveta um tempo, para você se distanciar dele, para depois ver com outros olhos”. E você pergunta hoje e penso que eu deveria reler esse material. Mas quando eu comparo aquele esforço teórico que eu fiz, sendo um dublê no campo da sociologia e da antropologia, lendo algo que eu nunca tinha lido na minha graduação. Líamos João Batista Freire, Lino Castellani, João Paulo Medina. Olhando hoje para as dissertações de mestrado eu diria que na minha geração tem muita coisa semelhante à muita coisa ruim atualmente. Mas alguns colegas daquela geração fizeram um esforço para além de suas capacidades e trabalhavam com temas interessantes. Eu tenho muito carinho por esse material da dissertação. Primeiro, foi ali que pude entender um pouco melhor o Brasil. No doutorado, avancei nesse sentido, com a leitura de clássicos, como Gilberto Freyre, Oliveira Vianna, literatura sobre teoria racial etc. Mas eu olho 25 anos depois para esse trabalho e penso: eu gosto dele. Poderia reescrevê-lo, poderia, mas eu gosto dele. Um artigo definidor, um clássico, e que não era tão acessível, e eu achei publicado no Instituto Geográfico Brasileiro, foi o “Dialética da Malandragem”, do Antonio Candido. Ele analisava o livro Memória do Sargento de Milícias e o personagem Pedro Malasartes. Elogiar o Antonio Candido é chover no molhado, pois é um grandes nomes do pensamento brasileiro. Até o Darcy Ribeiro, quando recebe um elogio do Antonio Candido, diz o seguinte: “Ser elogiado pelo Antonio Candido é tudo”. O artigo do Antonio Candido foi definidor, pois foi quem melhor entendeu essa valorização da teoria da malandragem via literatura, uma situação limiar entre a ordem a desordem. O discurso do jogador brasileiro articula um pouco isso, tensionando ordem e desordem. Puxando a ordem quando me favorece, tensionando a desordem para me favorecer. O material depois foi publicado. Um grande amigo que tenho na Educação Física brasileira se chama Marílio Ferreira Neto. Tivemos uma série de conflitos no dia a dia do trabalho. Mas ele é um cara de cabeça grande. Formador de campo, que luta pela instituição, ele curiosamente nunca publicou sua dissertação de mestrado. Quando cheguei ao Espírito Santo, ele mandou apresentar minha dissertação para o parecer da Secretaria de Difusão Cultural da UFES. Levei, o trabalho foi aprovado e publicado. O livro foi publicado por uma pressão do Marílio, não tenho uma visão estratégica de campo como tem o Victor Mello.

Você acredita que a malandragem continua sendo um elemento importante para entender o futebol no século XXI?

Acho que não. Essa categoria já estava em diluição naquele em que estudei. Há uma emergência de um discurso moralizante mais forte em todas as esferas, tanto nas novelas quanto na realidade. As pessoas leem todos estes escândalos com muito pessimismo. E isso também tem a ver com o debate no campo do futebol. Não podemos pensar que o futebol está descolado de outras coisas. E tem a ver também com a tecnologia. Podemos ver uma gota de suor cair. Isso demandou maior autocontrole e uma dissimulação mais fina. Hoje em dia esse negócio do jogador que cai está cada vez mais raro. Quando eu estava fazendo as entrevistas, os jogadores falavam de cavar pênalti. Hoje em dia ver essas cenas na televisão, com tanta precisão, é até um tanto bizarro. Acho que isso ganhou outra dimensão na sociedade, que tem a ver com os olhos estarem abertos a todos os detalhes. Eu entrevistei o João Saldanha, que tinha uma visão um tanto iconoclasta sobre tudo. Ele era, por exemplo, contra o videotape. Antes tínhamos uma em cima e outras correndo pela lateral. Hoje em dia são quantas câmeras? Muitas. Com tudo isso, ficou até mais complicado o esquema de corrupção. Os próprios policiais têm medo, pois cada um tem um celular na mão com um gravador. Criou-se muito mais constrangimentos nessa sociedade e essa categoria da malandragem se desvalorizou. Seria inconcebível hoje o Gérson fazer aquela campanha sobre levar vantagem em tudo. Isso precisa inclusive ser analisado. A Lei do Gérson é conhecida pela campanha anti-Lei do Gérson. Já havia um debate ético e moral muito forte no seio da sociedade brasileira. Nós estamos realmente num momento de tristeza no Brasil. A euforia da universidade federal durou até o último ano do mandato Lula. Mas existe uma dimensão que deve ser comemorada. As pessoas dizem: “Os empresários vão sair da cadeia”. Mas antes eles nem iam para a cadeia. Nós somos pessimistas. Mas estamos vivendo um crescente processo de vigilância. E esse processo de vigilância está no esporte, no futebol principalmente. O negócio do futebol, cujas receitas se dão principalmente pela televisão, tornou a imagem do jogador mais controlada. Lembro que na minha aparecia que na gesticulação dos jogadores eles concordavam com o juiz, mas parecia que eles estavam agredindo o juiz. Era uma forma de tentar desmoralizar o árbitro. Isso não funciona mais. Todos os golpes vão sendo incorporados a um roteiro de respostas. Essa é minha leitura. Você passa a ter roteiros.  E a tecnologia ajuda a controlar isso. Hoje a categoria malandragem pega mal, ainda mais entre as classes médias, aquelas que ditam a moral.

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