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Seleção permanente: algumas reflexões após o primeiro ano da experiência

Em dezembro de 2014, o então presidente da CBF, José Maria Marin, anunciou o projeto de constituição de uma Seleção Brasileira permanente. A proposta, exclusiva para o futebol de mulheres, envolvia a contratação de um grupo de jogadoras pela CBF, recebendo salários pela entidade e treinando de maneira contínua com a seleção visando a preparação para as competições internacionais, especialmente os Jogos Olímpicos de 2016.

O projeto é polêmico. É bastante óbvio que a estratégia visa a obtenção de conquistas a curto prazo a partir de um investimento financeiro relativamente baixo. O próprio coordenador de seleções femininas da CBF, Fabrício Maia, reconhece que a seleção permanente é apenas uma medida paliativa visando as importantes competições que estavam por vir: Mundial e Jogos Panamericanos em 2015 e os Jogos Olímpicos do Rio em 2016. Nas palavras dele: “O futebol feminino de clubes não existe no Brasil. É preciso pensar mais alternativas de ter um calendário permanente. Por isso que é importante, nesse momento, ter a seleção permanente”[1]. O discurso se repete na fala do coordenador de Futebol Feminino da entidade, Marco Aurélio Cunha: “Essa foi a única maneira que encontramos para a Seleção ter o nível necessário para disputar uma Olimpíada em condições próximas de grandes nomes do futebol mundial”[2]. Assim, o discurso alinhado da CBF vincula a necessidade da criação da seleção permanente à estrutura precária de clubes de futebol de mulheres e do baixo número de competições existentes no país, que não é capaz de manter a maior parte das atletas em atividade ao longo de todo o ano.

É possível, ainda, que esses eventuais resultados positivos, caso se concretizem, tragam retornos que ajudem a alavancar a modalidade, como maior interesse de público, da mídia e de patrocinadores. Mas essas possibilidades, até o momento, são apenas especulações. E ainda assim, esses impulsos após momentos de sucesso, via de regra, são temporários, cessando algum tempo após a conquista. A seleção feminina viveu isso no período em que chegou em duas finais olímpicas (2004 e 2008), conquistou o Pan em casa (2007) e chegou em uma final mundial (2007). Essa situação é comum não apenas no futebol de mulheres, mas em vários outros esportes que não o futebol dos homens.

Seleção brasileira antes do amistoso contra a Nova Zelândia, no Pacaembu em
2015. Foto: Rafael Ribeiro/CBF.

Na perspectiva dos clubes, a criação da seleção permanente não foi vantajosa. Isso porque, com a saída dos principais nomes do futebol nacional de suas equipes, as competições se tornam enfraquecidas e menos atrativas. E justamente as equipes que vinham se destacando no futebol de mulheres, a partir de investimento raramente encontrado na modalidade, são as mais prejudicadas. Na primeira convocação do projeto, realizada no começo de 2015, 21 das 27 convocadas eram oriundas de apenas três equipes: São José, então campeão mundial de clubes; Ferroviária, então campeão brasileiro e Centro Olímpico, campeão brasileiro de 2013. A própria CBF parece ter notado que tirar suas craques das competições nacionais não era lá muito interessante. Indício disso foi a decisão de incluí-las nas equipes que passassem para a segunda fase do Campeonato Brasileiro, ainda no ano passado.

No primeiro ano da experiência, o Brasil obteve dois títulos em quatro disputados. Em março, na Copa Algarve, o Brasil ficou em 7º lugar entre 12 equipes. Na Copa do Mundo da FIFA, que aconteceu entre junho e julho, a equipe caiu nas oitavas de final ao perder para a Austrália. Pouco tempo depois, a equipe seguiu para a disputa dos Jogos Panamericanos. Sem a presença da potência Estados Unidos, o Brasil era favorito e justificou o status ganhando todas as partidas disputadas com resultados incontestáveis. A última competição do ano foi o Torneio Internacional de Natal. Novamente o Brasil era favorito em uma disputa que contava apenas com outras três equipes: Canadá, México e Trinidad e Tobago. Sem maiores dificuldades, a seleção fechou o ano com o sexto título do torneio. Contudo, a impressão deixada no Mundial é de que o Brasil ainda é consideravelmente inferior às duas maiores potências do futebol feminino, Estados Unidos e Alemanha. Por outro lado, a disputa de quatro torneios ao longo do ano significou uma grande possibilidade de visibilidade à seleção. O Torneio Internacional de Futebol Feminino, que ocorre anualmente no Brasil desde 2009, representa, inclusive, uma importante oportunidade de ver ao vivo a equipe nacional, podendo aproximá-la do público.

Seleção brasileira após o título do Torneio Internacional de Futebol Feminino
de 2015. Foto: Rafael Ribeiro/CBF.

Recentemente outro fenômeno pode comprometer a ideia de manter a seleção permanente: a saída de atletas do seleto grupo para clubes do exterior. Desde o início, o projeto pareceu viável a partir de um cenário no qual a maioria das convocáveis estava no Brasil. O piso salarial do selecionado, segundo a CBF noticiou, é de 9 mil reais. Esse valor é consideravelmente mais alto do que a média das principais equipes do país, próxima dos 2 mil reais, mas inferior ao que pagam muitos clubes estrangeiros. Assim, se é fácil atrair futebolistas que ainda estão em terras brasileiras a abandonarem seus clubes para se juntar à equipe da CBF, aquelas com propostas do exterior dificilmente tomariam a mesma decisão. Isso ficou evidente logo na primeira convocação quando Bia e Marta, com contratos com o Hyundai Red Angels (da Coréia do Sul) e com o FC Rosengård (da Suécia), respectivamente, ficaram de fora do grupo.

Nesse início de ano, oito atletas que fizeram parte da seleção permanente iniciam a temporada em equipes estrangeiras. A zagueira Mônica foi para o Orlando Pride e a meio-campo Andressinha para o Houston Dash, ambos dos Estados Unidos; a lateral esquerda Tamires partiu para o Fortuna Hjørring, da Dinamarca; a atacante Debinha para o Avaldsnes IL, da Noruega; a atacante Andressa Alves para o Montpellier e a zagueira Erika e a atacante Cristiane para o PSG, os dois da França; e a zagueira Rafaelle, que ano passado deixou que ir para uma equipe dos Estados Unidos para ingressar na seleção permanente, agora é atleta do Changchun, da China.

Das 23 atletas que disputaram a Copa do Mundo no ano passado, 11 atualmente jogam fora do país. Além de Marta e Bia que recusaram a permanente e seis das oito egressas do grupo (Erika e Debinha, por motivo de lesão, não foram ao Mundial) também compuseram a seleção Rosana, atualmente no PSG (França), Rafaela Travalão, no Boston Breakers (Estados Unidos), e Poliana, no Stjarnan, da Islândia.

Assim, entre os destinos escolhidos pelas treze atletas previamente mencionadas, todas com possibilidade de figurarem na lista dos Jogos Olímpicos desse ano, constam oito países: Suécia, Coréia do Sul, Estados Unidos, Dinamarca, Noruega, França, China e Islândia. Na seleção dos Jogos de 2012 havia sete atletas jogando em três países: Rússia (Fabiana, Aline, Cristiane e Ester), França (Rosana) e Suécia (Marta e Elaine). Já no grupo de 2008 eram oito jogadoras de seis países, sendo eles: Espanha (Andréia), França (Simone), Dinamarca (Renata Costa), Suécia (Daniela Alves, Marta e Cristiane), Japão (Pretinha) e Áustria (Rosana). Parece, assim, que a seleção permanente não foi capaz de conter a circulação de jogadoras brasileiras para fora do país. O próprio coordenador de Futebol Feminino Marco Aurélio Cunha, em fala conformada, reconhece o processo: “Os mercados se abriram para as meninas e eu não posso impedir isso”[3]. Ainda que o time da CBF possa ser menos instável que os times brasileiros, cujo aporte financeiro que garante a manutenção das equipes a cada temporada é bastante incerto, as motivações para sair do país – tanto financeiras quanto profissionais e pessoais – continuam existindo.

Marta em ação pela seleção brasileira. Foto: Vlademir Alexandre/ALLSPORTS.

Cabe, inclusive, uma observação mais atenta a esse aparente aumento do fluxo para o exterior. O nome da empresa Orange Blue Sport (OBS), do empresário português Luís Filipe Silva, vem surgindo em páginas de facebook de algumas atletas, indicando alguma forma de agenciamento, mas há poucas informações disponíveis sobre a organização e seu papel nas transações das brasileiras recém-saídas (se é que ele existe). Se, de fato, houver tal atuação, seja pela OBS ou outras empresas ou empresários é uma mudança com relação às migrações de períodos anteriores, bastante baseadas em indicações entre as próprias atletas (PISANI, 2014). Isso indicaria um maior profissionalismo nessas transferências.

De todo modo, parece evidente que a seleção permanente cada vez reúne menos atletas que de fato participarão das principais competições internacionais. Além disso, são justamente as principais expoentes que debandam. Assim, antes mesmo de ser possível avaliar os resultados do “projeto seleção permanente”, sua estrutura parece se desmontar. Não seria esse um impulso suficiente para repensar essa estratégia de incentivo ao futebol de mulheres nacional, focando mais nos clubes, no incentivo à prática e à formação de atletas e menos na seleção principal? Ações desse tipo estão em curso, como o inventivo a equipes de mulheres a partir do Profut e a manutenção da Copa do Brasil e Campeonato Brasileiro, mas elas não bastam. Um eventual título olímpico não pode esconder isso.

Referências

PISANI, Mariane da Silva. Migrações e deslocamentos de jogadoras de futebol: mercadoria que ninguém compra? Esporte e Sociedade, v.9, n.23, mar.2014.


[1] Fala publicada em reportagem do IG

[2] Fala publicada em reportagem do site da Revista Istoé

[3] Fala publicada em reportagem do site da Revista Istoé

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Luiza Aguiar dos Anjos

Atleticana, boleira, professora e pesquisadora. Interessada principalmente nas existências invisibilizadas nas arquibancadas e campos.

Como citar

ANJOS, Luiza Aguiar dos. Seleção permanente: algumas reflexões após o primeiro ano da experiência. Ludopédio, São Paulo, v. 81, n. 3, 2016.
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