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Palmeiras x Santos no Morumbi: um time despejado da própria casa

Mariana Mandelli 31 de agosto de 2020

A série “Práticas torcedoras em territórios palmeirenses” é baseada na dissertação de mestrado de Mariana Mandelli, intitulada “Allianz Parque e Rua Palestra Itália: práticas torcedoras em uma arena multiuso” (Antropologia-USP, 2018). A pesquisa de campo foi realizada entre 2015 e 2017 nos arredores do Allianz Parque com o objetivo de investigar os efeitos da modernização do estádio da Sociedade Esportiva Palmeiras entre a torcida. Confira a série de textos aqui.

Foto: Mariana Mandelli

Um estacionamento com telão. Na tarde de 23 de agosto, essa imagem do Allianz Parque tomou as redes sociais: em um evento patrocinado por uma marca internacional de cerveja,[1] dezenas de carros enfileirados ocupavam o gramado da arena multiuso,[2] assumindo o lugar dos jogadores de Palmeiras x Santos, jogo marcado para às 16h daquele domingo.

Enquanto um dos maiores clássicos e rivalidades do futebol brasileiro era transferido para o campo de outro rival, o Estádio Cícero Pompeu de Toledo, mais conhecido como Morumbi,[3] cerca de mil convidados encerrados em seus carros tinham a oportunidade de assistir à final da Liga dos Campeões da UEFA na arena palmeirense. A decisão, disputada por Bayern de Munique e Paris Saint-Germain, teve a presença de ex-jogadores brasileiros que atuaram no torneio internacional e de “influenciadores digitais”, essas figuras com muitos seguidores nas plataformas digitais.

Foto: Divulgação/redes sociais

A ação de marketing em formato de cinema drive-in faz parte das “Arena Sessions”,[4] modelo lançado pela administração do Allianz Parque para vender shows e outros eventos enquanto a pandemia de coronavírus impede que o setor cultural retome suas atividades com segurança. Com espaço para quase 300 automóveis, a audiência assiste aos concertos e peças de teatro sem sair dos veículos e sem, em tese, possibilidade de contaminação.  

Em tempos pandêmicos, em que torcidas estão ausentes dos estádios por motivos sanitários e são substituídas por sons ambientes, faixas de organizadas e totens personalizados de papelão, a transferência de Palmeiras x Santos para o estádio são-paulino causou reclamações apenas nas redes sociais, em comentários que dividem os torcedores entre aqueles que acreditam que o contrato do alviverde com a construtora W Torre foi um bom negócio e aqueles que apontam, incrédulos, o alto nível de subserviência que caracteriza a negociação.

Essa, porém, não foi a primeira vez que um jogo importante (e, por importante, leia-se um clássico ou uma partida eliminatória) do Palmeiras foi deslocado por conta da agenda de eventos do Allianz Parque. O primeiro derby de 2016, realizado no dia 3 de abril,[5] por exemplo, teve de ser realizado no Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu, por conta de um concerto da banda inglesa Coldplay.[6]

Ademais, desde a inauguração do Allianz Parque, em 19 de novembro de 2014, algumas datas do calendário esportivo do Palmeiras tiveram de ser alteradas para acomodarem, simultaneamente, os eventos culturais e os jogos do clube.[7] Foi o caso de, novamente, um Palmeiras x Santos, mas pelo Campeonato Brasileiro de 2016. A partida estava marcada para 9 de julho, um sábado, dia em que a arena receberia uma convenção religiosa. O certame então foi adiado para três dias depois, uma terça-feira, um dia útil atípico no calendário do futebol brasileiro da Série A.

Dentre todos os exemplos possíveis a serem citados, talvez a ocasião mais emblemática tenha sido a realização das quartas de final da Copa Libertadores de 2019 no Pacaembu. O embate entre Palmeiras x Grêmio foi transferido para o municipal por conta dos shows de Sandy & Junior na arena, marcados para os dias 24 e 25 de agosto daquele ano. O time paulista acabou eliminado por 2×1 de virada[8] o que rendeu uma enxurrada de piadas futebolísticas envolvendo o clube, a dupla musical de irmãos e o deslocamento da decisão para fora do Allianz Parque.

Como se sabe, o contrato entre o Palmeiras e a W Torre é alvo de críticas e elogios desde 2010, ano em que a reforma do Estádio Palestra Itália teve início. Em linhas muito gerais, a arena só será do clube novamente[9] em 30 anos contados a partir de 2014. Até lá, o Palmeiras administra o Allianz Parque em dias de partidas oficiais e a construtora, em todos os restantes.[10] Essa foi a forma mais sustentável que o clube encontrou de financiar a reforma do Palestra Itália sem precisar, teoricamente, despender cifras milionárias.[11]

Porém, o cenário não é tão simples assim. Nos últimos anos, teve início um processo de arbitragem entre o Palmeiras e a empresa por interpretações diferentes do contrato. Sucintamente, os motivos seriam pontos assinaláveis do documento para a exploração da arena: valor dos ingressos, bilhetes eletrônicos, catracas e cadeiras.[12]

Vale destacar ainda que toda vez que joga fora da sua própria casa detendo o mando de campo, o Palmeiras deve alugar um estádio para realizar a partida, o que significa desembolsar um dinheiro desnecessário. Em tese, quem deveria arcar com esse ônus seria a própria construtora, por meio do pagamento de multa, mas não há clareza sobre essas negociações entre os dois, já que os processos caminham em âmbito privado.

É por conta desses e outros embates, travados aos olhos dos torcedores por meio da imprensa esportiva, que o time é obrigado a jogar frequentemente fora de sua própria casa, como aconteceu no último 23 de agosto.

O ônus de ter sua casa transformada em uma arena multiuso é dos fluxos materiais e imateriais deixados como herança da realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Mesmo que não tenha sido reformado para abrigar jogos da competição, o Allianz Parque pode ser considerado uma peça fundamental do cenário de atualização de equipamentos esportivos que ganhou força desde o anúncio do País como país-sede do mundial, em outubro de 2007.

Foto: Mariana Mandelli

Sua edificação reforça valores como inovação, segurança, conforto, tecnologia e sustentabilidade, categorias que permeiam todo o discurso das exigências da Federação Internacional de Futebol (FIFA)[13] para a concretização do megaevento esportivo. Além disso, a chamada “multifuncionalidade” é bastante acionada pela entidade como uma maneira de deixar um legado[14] para o local que sediou o torneio.

A capacidade de multiplicar os usos das arenas surge como um dos “tentáculos” desse legado, uma vez que se descortinam novas possibilidades de viabilidade financeira que não o esporte, como aluguel do espaço para eventos que gerem consumo.

Nesse sentido, o antropólogo Martin Curi (2013) destaca que, no século XXI, os megaeventos são efetivamente caracterizados como torneios de valor globalizado, com fluxos múltiplos, já que “tanto o local anfitrião se expõe ao mundo quanto tendências internacionais nele se refletirão” (2013, p.73).

[…] o que está em pauta nestes torneios não é apenas o status, a posição, a fama ou a reputação dos atores, mas a disposição dos principais emblemas de valor da sociedade em questão. Enfim, embora tais torneios de valor ocorram em épocas e lugares especiais, suas formas e resultados sempre trazem consequências para as mais mundanas realidades de poder e valor na vida comum. (APPADURAI apud CURI, 2012, p. 36-37)

Ainda de acordo com Curi (2013, p.67), o legado de um megaevento esportivo é complexo demais para ser quantificado ou qualificado de forma superficial, o que inclui o impacto que eles trazem para as formas de torcer, que passam a sofrer fortemente consequências da “arenização”. Na mesma linha argumentativa, Silva e Zaviani destacam que tais condições engendram as cidades receptoras do empreendimento em “circuitos globalizados de produção e distribuição de bens e serviços” (2014, p.72).

Assim, não é exagero dizer que o Allianz Parque sintetiza os fluxos materiais e imateriais deixados como herança do processo neoliberal movido pelos megaeventos esportivos e também pelo contexto cada vez mais mercantil do futebol. Típico modelo de arena demandando pela FIFA, é comum encontrar em seu site oficial bordões marqueteiros como “Allianz Parque aproveita ao máximo o conceito multiuso e oferece diversas opções de espaços e serviços para você realizar sua festa, show e reuniões corporativas” – ou ainda “O Allianz Parque possui espaços exclusivos para a sua empresa realizar relacionamento, com serviços de hospitalidade fornecidos por parceiros de reconhecimento mundial”.

A transformação do antigo Parque Antarctica/Palestra Itália em uma arena que prioriza o produto e o lucro é evidente inclusive no nome Allianz Parque, fruto da prática de naming rights. O contrato com a seguradora alemã Allianz garantiu que a arena palmeirense levasse o nome da multinacional pelo mesmo tempo do acordo entre o Palmeiras e a W Torre: 20 anos, com possibilidade de renovação por mais uma década. Estima-se que a negociação tenha chegado a R$ 300 milhões. Além do Allianz Parque, a seguradora nomeia mais quatro arenas: Allianz Arena, na Alemanha; Allianz Stadium, na Austrália; Allianz Park, na Inglaterra, e Allianz Riviera, na França (GALUPPO e OLIVEIRA FILHO, 2016, p.87).

O nome Allianz Parque remete ao Parque Antarctica, na tentativa de resgatar suas origens. No entanto, a homenagem para por aí, já que nada remete ao Palmeiras na estrutura externa e metálica da arena. Ainda não foram instalados o nome do clube e seus escudos na fachada, de modo que um transeunte que aviste a arena da rua não enxerga qualquer referência ou símbolo que dê uma ideia de pertencimento palmeirense. Tal ausência só é amenizada pela sede do clube social, localizada ao lado de um dos portões do campo, e pelos bares, casas e sedes de torcidas organizadas alviverdes na região. Não há previsão para a colocação dos escudos nem para os reparos remanescentes da estrutura da obra.

Internamente, todas as estruturas que remetem ao Palmeiras – como os painéis históricos para os visitantes do estádio e os escudos posicionados ao lado dos gols em dia de jogo, por exemplo – são móveis ou desmontáveis, de modo a serem facilmente retiradas para eventos diversos tais quais os já citados shows que o Allianz Parque recebe com frequência. Também não há nenhum museu ou salão de troféus do alviverde na estrutura, outra promessa do contrato bastante ansiada pelos torcedores.

Foto: Mariana Mandelli

Assim, acionar o conceito de não-lugar do antropólogo francês Marc Augé para classificar uma arena multiuso como o Allianz Parque parece óbvio de certo modo, dado o apagamento de marcas identitárias que a modernização do estádio promoveu, desalmando uma das praças esportivas mais tradicionais do futebol brasileiro[15]. A suspensão de referências históricas em prol de fazer parte de um contexto global lucrativo e consumidor é expressa no cumprimento dessa agenda de shows em detrimento do futebol. Desalojar um clube de seu estádio para realizar um drive-in de jogo europeu promovido por uma marca internacional é só mais um dos exemplos que deixaram o plano do simbólico para tomarem concretude na relação que o Palmeiras e o palmeirense têm com a arena.

A substituição de um jogo real por uma “Arena Session”, mesmo sem torcida, é, por ora, a evidência máxima de que o Palmeiras se tornou inquilino em seu próprio lar. Por mais que o modelo de “parceria” com a construtora possa trazer benefícios (como somas astronômicas de dinheiro com shows), o preço a se pagar é, simbólica e concretamente, o esmagamento da ideia de casa de um time de futebol, o que é de uma ironia bastante melancólica para uma instituição que detém, há 100 anos, o terreno onde construiu sua própria história.

 

Notas

[1] Ler em Heineken fecha Allianz Parque para final da Champions League. Máquina do Esporte, 20 de agosto. Acesso em 22 de agosto de 2020. 

[2] Vale lembrar que o Allianz Parque usa grama sintética desde o início deste ano, o que facilitaria a renovação do gramado após grandes eventos.

[3] É preciso recordar que o Palmeiras mandar jogos no Morumbi não é exatamente uma novidade. A casa são-paulina inclusive fez parte de momentos icônicos da trajetória do clube, como o título paulista de 1993, no qual derrotou o Corinthians. No entanto, a crítica aqui é válida por conta da motivação dessa troca de estádios.

[4] É possível conferir a agenda das “Arena Sessions” no site oficial da iniciativa. Acesso em 20 de agosto de 2020.

[5] Na ocasião, o Palmeiras venceu o Corinthians por 1×0. Este foi o último clássico paulista com a presença de torcedores dos dois times nos estádios. Por conta de conflitos entre palmeirenses e corintianos antes da partida, que resultaram na morte de um homem, a norma da torcida única passou a vigorar no Estado de São Paulo.

[6] Ler em Coldplay faz Palmeiras transferir jogo contra o Corinthians para o Pacaembu. UOL Notícias, 24 de março de 2016. Acesso em 22 de agosto de 2020.

[7] Mais uma referência: CBF muda data, e Palmeiras pegará o América-MG no Allianz Parque. Portal Terra, 8 de junho de 2016. Acesso em 22 de agosto de 2020.

[8] O Palmeiras tinha vencido a partida de ida por 1×0 na Arena do Grêmio, uma semana antes.

[9] O Palestra Itália adquiriu o Parque Antarctica em 1920. Ler mais em 100 anos da compra do Parque Antarctica. Acesso em 20 de agosto de 2020.

[10] Segundo o contrato, em dias de jogo, o clube deteria o direito de comercializar cerca de 30 mil assentos e a construtora, 10 mil. Além disso, o Palmeiras também recebe uma porcentagem da receita gerada pelos eventos.

[11] Há controvérsias sobre essa questão, uma vez que se especula que o clube perderia dinheiro com a transferência de jogos para outros estádios.

[12] Na minha dissertação, detalho melhor as decisões de tais processos.

[13] Existem diversas versões dos documentos publicados pela FIFA, uma vez que são atualizados no decorrer do tempo. Para a construção da dissertação, usei o relatório Football Stadiums: Technical recommendations and requirements, cuja 5ª edição data de 2011. Uma versão resumida e traduzida pode ser lida no site do antigo Ministério dos Esportes. Ler mais em Guia de Recomendações de Parâmetros e Dimensionamentos para Segurança e Conforto em Estádios de Futebol. Acesso em 20 de agosto de 2020.

[14] Há diversas discussões nas ciências sociais, especialmente na sociologia do esporte e na antropologia das práticas esportivas, que problematizam essa ideia de “legado”.

[15] Tal comparação rende uma boa discussão se pensarmos na territorialidade palmeirense, que exploro na dissertação e que trarei nessa série de artigos, como um contraponto dessa ideia de arena como não-lugar.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Mariana Mandelli

Doutoranda em Antropologia Social na USP, com mestrado na mesma área e instituição, com pesquisa que investigou o processo de "arenização" do Allianz Parque. É graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e em Ciências Sociais pela USP.

Como citar

MANDELLI, Mariana. Palmeiras x Santos no Morumbi: um time despejado da própria casa. Ludopédio, São Paulo, v. 135, n. 3, 2020.
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