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“Ou joga por amor ou joga por terror”: o enigma dos protestos de torcedores contra jogadores

Fabio Perina 23 de setembro de 2018

“Muito dinheiro e pouco futebol”. “Queremos raça”. “Fora…” Esses são alguns dos discursos mais conhecidos e identificáveis como protestos de torcedores contra jogadores quando consideram que o time está em má fase. Suas manifestações são as mais diversas: xingamentos, faixas, pichações, dedo na cara de jogador, empurra-empurra, eventualmente alguns tapas. Torcedores que desafiam o elenco a uma “partida”. “Enterros” com velas e caixões com nomes de dirigentes (antigamente mais comuns) e jogadores (atualmente mais comuns) [1]. Objetos que se somam às cenas como alegorias: pipoca, pamonha, galinha, nariz de palhaço. E os locais que a revolta vem à tona também são cada vez mais diversos: dentro do estádio ou em seu entorno, CT ou sede social do clube, aeroportos e até casas noturnas.

Manifestações que despertam algum tipo de revolta ou indignação mas sobretudo um fascínio. Todo torcedor que já gozava e zoava com um torcedor rival em crise pelos maus resultados dentro de campo arruma até mais gozação com esses episódios fora de campo que a potencializam. Postura que transita entre a cobrança e o humor. “ACABOU A PAZ” (ironizado com o uso da grafia errada “ACOBOU A PAZ”). O certo é que dificilmente alguém que escuta uma ocorrência de CENAS LAMENTÁVEIS[2] fica neutro. Elas chacoalham as conversas sobre futebol em algum dia monótono.

A simples perspectiva de que haja algum tipo de protesto, seja lá qual for sua legitimidade, já acirra os ânimos. É comum que torcedores declarem reativado o “disque balada”, ou seja, uma expressão popular que remete a vigiar e se possível até mesmo intimidar jogadores ‘baladeiros’ em seus excessos pela noite. Não são raras as suspeitas no senso comum de que as diretorias dos clubes encorajem os protestos, vide mantendo os portões do clube aberto sem oferecer restrição à entrada dos torcedores. Servindo como um auxílio à diretoria de forma indireta. E em alguns raros casos os protestos são sugeridos de forma até mais direta[3].

Enfim, como já se percebe até aqui a ‘falação’ que se faz sobre esses causos e incidentes começa e termina na cascata de sempre que “isso não são torcedores” e dificilmente chega a uma análise mais profunda. Uma recente e pontual operação punitiva[4] sugeriu oficializar esse senso comum de que dirigentes de clubes tivessem vínculos estreitos demais com torcedores. Mas ao mesmo tempo mostrou que o sistema entra em “curtos-circuitos” que impedem a completa implementação do ‘futebol moderno’—ou seja, transformar essa relação clube-torcedor do paternalismo/clientelismo em comercial. Um caminho de obstáculos muito mais reais do que sua publicidade aparenta e que se deve alargar suas brechas para expor suas contradições. (Afinal, o liberalismo no Brasil é outra cascata…)

Avançando um pouco mais na discussão, fiquei curioso em propor alguma chave de leitura teórica que proporcione alguma lógica a esse volume de evidências tão dispersas. São as semelhanças dos protestos de torcedores contra jogadores com o conceito de ‘violência sacrificial’ de Girard[5] . Cuja reflexão original procurou tratar de um ritual pré-moderno no qual toda a sociedade sacrifica uma vítima (o famoso bode expiatório) acreditando poder colocar fim a uma escalada de violência sem fim que afetaria a todos.

Já em tempos atuais e pós-modernos, olhar para tais protestos parece ter uma via de mão dupla. A complexidade de embaralhar as cartas entre quais sujeitos são vítimas e capatazes. A expiação deve ser lida como uma expulsão daquilo que é indesejado. Vejamos as suas várias facetas atuais:

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Torcedores corinthianos montam protesto na Praça Charles Miller. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

Por parte dos torcedores que fazem o protesto contra os jogadores, expulsar simbolicamente do clube aqueles que desonram sua história. Muitas vezes eles próprios entendem que precisam de sacrifícios individuais ou coletivos à própria entidade para salvar o clube de um rebaixamento, por exemplo. E, ainda, muitas das vezes a violência direta (aquela que é muito cômoda que todos apontem o dedo) é a última expressão possível para aqueles cuja voz foi atropelada pelo ‘futebol moderno’. Justamente o negócio que mais vira as costas pro torcedor fanático em proveito do consumidor.

Já por parte de todos os outros que apontam o dedo para os torcedores que fizeram o protesto de alguma forma se beneficiam dessa expiação. Para a imprensa é um prato cheio. Garantia certa de audiência. Sobretudo quando ocorre em um dia isolado sem partidas nos quais é mais difícil publicar alguma pauta interessante. E por isso sempre convém para a imprensa um certo jogo duplo: ao mesmo tempo censura suas condutas, mas necessita que elas aconteçam para sempre ter com o que criticar “esses vândalos travestidos de torcedores”.

Ainda sobre os comentaristas esportivos, os protestos de torcedores guardam mais semelhanças do que parece com a popular “teoria do fato novo”: pela qual a solução para um elenco que não vem rendendo é demitir o treinador para deixar o ambiente menos carregado. Ainda mais quando se troca um treinador “medalhão” por um “amigão”. No retorno das vitórias tanto após as demissões quanto após os protestos costuma ser enunciada essa relação causal.

Para os dirigentes, é uma forma de “dar um tá ligado” em um elenco indolente e fazer a cobrança chegar através de uma palavra mais contundente sem se exporem a isso. Ora, se a sociedade hoje é menos permissiva ao tradicional autoritarismo dos dirigentes, ele encontrou formas de transferir-se a outros sujeitos. Conforme são comuns as suspeitas, embora sem provas, os dirigentes ficam blindados por torcedores que acabam, direta ou indiretamente, assumindo essa “bucha” de uma ação direta.

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Fora Marin: Cena rara. Juntos, corintianos, palmeirenses, santistas, são-paulinos, gremistas, colorados e afins. Rivais nas arquibancadas, torcedores empunharam a mesma bandeira nas ruas de São Paulo. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

E, para a grande massa de torcedores do próprio time, expulsam o desejo que tem de “apavorar aqueles mercenários” através da ação direta “daqueles baderneiros”. A diferença é que não possuem a coragem de chegar às vias de fato e podem expulsar de si a culpa por estar no lado ‘violento’ da ocorrência. O que pode ser notado em situações mais amplas do que esses protestos. Afinal, a violência é tão indecifrável, pois a maioria se fascina quando vê as CENAS LAMENTÁVEIS, mas apenas uma minoria muito reduzida passa pelos riscos de uma passagem ao ato em busca de alguma redenção.

A mensagem subliminar passada pelos torcedores que protestam é que são a bucha de canhão de um sistema que todos usam (vide os vários sujeitos posicionados até aqui), mas ninguém o assume. A violência direta é apenas a ponta visível do iceberg da violência estrutural que a sustenta[6]. Até porque parte do imaginário do futebol ainda é o de que a maioria das vezes que um time não tá jogando bola ele volta a vencer depois de um protesto bem dado! E quem não vai dizer que depois de retirar o bode da sala a vida não melhora para todos…

 


[1] Esse ritual, além das ocorrências recentes, já foi observado no surgimento das Torcidas Organizadas no final dos anos 60 como um grande ato de rebeldia e liberdade ao virarem as costas aos dirigentes.  HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.

[2] Uma página do Facebook que há anos pauta seu conteúdo numa inversão da lógica discursiva da mídia convencional: exaltar exatamente essa expressão que costumava ser repudiada

[3] http://globoesporte.globo.com/futebol/times/atletico-mg/noticia/2010/09/kalil-nao-faz-mal-os-jogadores-tomarem-um-cacete-na-madrugada.html

[4] https://globoesporte.globo.com/programas/esporte-espetacular/noticia/policia-fecha-cerco-a-clubes-e-organizadas-novas-escutas-revelam-ameacas.ghtml

[5] RIFIOTIS, Theophilos. Violência e cultura no projeto de René Girard. Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 1998.

[6] http://www.ludopedio.org.br/arquibancada/o-tripe-da-violencia-culpa-nao-e-so-das-torcidas-organizadas/

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. “Ou joga por amor ou joga por terror”: o enigma dos protestos de torcedores contra jogadores. Ludopédio, São Paulo, v. 111, n. 23, 2018.
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