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Os usos políticos do esporte: a instrumentalização esportiva no decorrer da história

Gabriel Assis Farias 27 de agosto de 2020

O esporte está intimamente ligado à humanidade, faz parte da vida humana em sociedade e, consequentemente, pode ser utilizado como ferramenta política. O uso político do esporte pode acontecer tanto pelo aparelhamento do poder político institucional, servindo como um meio propagandístico de governos e, assim sendo, da classe política dominante, quanto por grupos que buscam reivindicar direitos políticos e transformações sociais. Este envolvimento político do esporte é visto desde a Grécia Antiga, com os jogos olímpicos, que antes mesmo do foco estar no culto ao corpo, era um evento de socialização e política. As batalhas de gladiadores em Roma, um evento político criado para o apaziguamento dos ânimos da população.

A utilização do futebol como meio de propaganda política pelos regimes totalitários nazifascistas, nas décadas de 1930-1940, é notória. Benito Mussolini, ditador italiano, aproveitou-se do bicampeonato mundial da seleção italiana (1934 e 1938), sendo o título de 1934, disputado e conquistado na própria Itália, como eventos com alta carga de politização que exaltavam o regime e os ideais de superioridade e força dos italianos. O mesmo ocorreu nos Jogos Olímpicos de 1936, realizados em Berlim, na Alemanha Nazista. Ainda sobre a influência de governos europeus de extrema-direita, é interessante lembrar-se da relação de um dos maiores clubes de futebol do mundo, o Real Madrid, e o ditador espanhol Francisco Franco. Aliás, Franco também manteria uma relação digamos, no mínimo, contraditória com o Athletic Bilbao, clube do País Basco, uma região autônoma que se localiza ao norte da Espanha e que tem uma tradição nacional-cultural bem forte, o que levava a região a ser um caldeirão efervescente de conflitos de teor separatistas e de difícil acesso para a política nacionalista do governo. Mesmo assim, Franco e outros membros do regime entendiam que:

“[…] as raízes da ‘verdadeira Espanha’ estavam no País Basco, enredadas no catolicismo e nas noções de império e sobrevivência contra todas as probabilidades. Os bascos eram vistos como a classe guerreira da Espanha: ‘valores essenciais, associados à virilidade, são a bravura, o sacrifício, a obediência aos líderes e o sentido de honra’. […] Enquanto tentava erradicar o nacionalismo basco, Franco tratava os jogadores da região como os maiores símbolos do espanholismo: a fúria española foi ressuscitada, só que dessa vez passou a carregar o espirito da ditadura.” (WILSON, 2016, p. 98).

De acordo com Jonathan Wilson (2016), para a Espanha franquista e para a Itália fascista, o futebol passou a representar uma atividade claramente de características bélicas. Casos semelhantes de aproveitamento de eventos e desempenho esportivos ocorridos nos regimes ditatoriais nazifascistas na Europa, nas décadas de 1930-1940, também ocorreram na América do Sul, no período que compreende os regimes militares – décadas de 1960-1990 – do continente. Um dos casos mais emblemáticos, e que até hoje é alvo de polêmicas e suspeitas – pois não se tem documentos que o comprovam –, é o envolvimento do regime ditatorial argentino na classificação da sua seleção nacional de futebol para a final da Copa do Mundo de 1978, naquele país.

Seleção italiana no início dos anos 1930, em campo com o uniforme branco de cortesia, com a intenção de fazer a saudação fascista antes do início da partida. Foto: Wikipedia.

A ditadura militar argentina é considerada uma das mais violentas do continente, e em 1978 a oportunidade de sediar um evento esportivo de tamanha magnitude, cujo povo tinha enorme paixão, foi visto pelos militares como a chance perfeita de não só distrair a população, tão afetada com a opressão do regime, como transparecer uma imagem de grandeza do governo. A contradição do evento com a ditadura acontece a partir do momento em que o Estádio Olímpico Monumental de Núñez, palco da final do torneio entre Argentina e Holanda, localizava-se a algumas quadras da Escola de Mecânica da Armada, local onde vítimas eram torturadas. Na mesma linha de proximidade entre ações de cerceamento da liberdade e de violência contra opositores dos regimes militares com estádios de futebol, está a ditadura chilena que utilizou o Estádio Nacional do Chile como campo de prisioneiros, sendo aproximadamente 40.000 pessoas aprisionadas no estádio. 

Os boicotes aos jogos Olímpicos na primeira metade da década de 1980 é outro exemplo. Os EUA e vários países do bloco capitalista boicotaram as olimpíadas de 1980, sediada em Moscou na União Soviética. Em resposta, a URSS, contando com o apoio de grande parte dos países do bloco comunista, boicotaram os jogos Olímpicos de 1984, sediados em Los Angeles nos EUA – tendo como contexto a Guerra Fria. São apenas alguns exemplos, porém claros, da dinâmica de relacionamento entre esporte e política.

No entanto, é nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, que ocorre um dos eventos mais trágicos e estarrecedores da história do esporte: Onze integrantes da delegação olímpica israelense foram vítimas de um sequestro organizado pelo grupo terrorista Setembro Negro, onde a motivação do ato se encontrava nos conflitos entre árabes-palestinos e Israel. As consequências deste episódio foram violentas e catastróficas, pois houve 17 mortes, entre membros da delegação israelense, terroristas e agentes de segurança alemães. 

Nos últimos anos, vem ocorrendo alguns eventos, no âmbito esportivo, que envolvem manifestações que contestam alguns paradigmas sociopolíticos. Além disso, a partir desses acontecimentos, podem-se estabelecer paralelos com outras manifestações de mesmo cunho político-contestatório em décadas anteriores. Exemplo desses eventos foi quando o então quarterback do San Francisco 49ers, Collin Kaepernick, ajoelhou-se enquanto o hino dos EUA era tocado, em protesto contra a opressão racial sofrida pelos negros nos EUA, em 2016, iniciando assim uma onda de protestos de mesmo tipo dentro da liga. Semelhante às reivindicações de Kaepernick em 2016, acompanhamos este ano o destaque que o movimento “Black Lives Matter | Vidas Negras Importam” recebeu pelo mundo todo após o assassinato de George Floyd por policiais de Minneapolis e agora pela tentativa de assassinato de Jacob Blake por policiais de Kenosha, Winsconsin.

Deste modo, muitos atletas – Lewis Hamilton e LeBron James, por exemplo – adotaram o movimento e passaram a protestar em favor das pautas antirracistas, percebendo e utilizando a força de suas imagens públicas que geraram ainda mais engajamento ao movimento. Assim, equipes e ligas esportivas também adotaram posicionamentos e atitudes que buscam combater o racismo não só no esporte, como na sociedade.

Uma clara demonstração deste engajamento na luta por justiça social foi a postura dos atletas de Milwaukee Bucks e Orlando Magic de boicotarem o jogo 5 dos Playoffs da NBA em protesto contra a ação violenta e criminosa da polícia estadunidense no caso Jacob Blake. O boicote foi amplamente apoiado por outros times da liga – surgindo até o debate sobre o cancelamento da temporada – e refletindo também nas outras ligas profissionais.

Em paralelo ao protesto de Kaepernick em 2016 e ao Black Lives Matter de 2020, comparam-se os protestos dos atletas da delegação dos EUA, Tommie Smith e John Carlos, que nas Olimpíadas de 1968 na Cidade do México, protagonizaram um manifesto pela vida do povo negro. Ao tocar o hino do país, ambos os atletas abaixaram suas cabeças e ergueram o punho – saudação do grupo político “Panteras Negras”.

É interessante ressaltar a enorme influência de questões raciais no esporte estadunidense, isto é, nota-se uma forte tendência de que os protestos ocorridos no esporte nos EUA tenha, majoritariamente, como sua reivindicação principal a contestação sobre a realidade sociopolítica do negro na sociedade estadunidense. Além de apresentar alguns casos de segregação racial dentro do esporte do país, que se exemplifica na formação das ligas negras de beisebol – Negro Leagues – na década de 1920 – notadamente, momento em que vigorava no país às Jim Crow Laws, isto é, leis de segregação racial.

Os atletas norte-americanos Tommie Smith e John Carlos protestam durante premiação dos 200m livres nos Jogos Olímpicos da Cidade do México, 1968. Foto: Wikipedia.

Todavia, a questão de gênero e sexualidade vem ganhando cada vez mais espaço de atuação e voz nas lutas reivindicatórias de atletas no país. Um exemplo claro e atual foi o processo movido pelas jogadoras de futebol da seleção dos EUA contra a própria federaçãoque acabou sendo derrotado – sobre discriminação de gênero, além da atitude da jogadora Megan Rapinoe em não cantar o hino estadunidense antes do início das partidas em forma de protesto. 

Infelizmente, nem só de reivindicação e lutas por direitos o esporte contemporâneo vive, há outros casos vistos com certa frequência, são as manifestações reacionárias preconceituosas e muitas vezes violentas de torcidas organizadas de alguns clubes europeus com posicionamento político de extrema-direita. Um retrato bem recorrente sobre essa questão é a torcida organizada da Lazio, clube de sede na capital italiana, que está envolvida em vários episódios de cantos racistas e de apologia ao fascismo.

Entender e analisar o esporte como um fenômeno social e político é importante para percebê-lo como um objeto de estudo bem vasto e, por isso, deve ser valorizado e mais bem explorado – o que já vem acontecendo nas últimas décadas. Neste artigo, busquei apresentar um breve recorte sobre alguns episódios históricos que ocorreram por vários lugares do mundo, envolvendo ações políticas institucionais e movimentos reivindicatórios. Pretendo, em um segundo artigo, apresentar alguns eventos ocorridos no Brasil, buscando a mesma linha contrastante entre as diferentes maneiras de utilizar o esporte como ferramenta política.

Referências bibliográficas

BRITO, Taís Silva de. Rompendo barreiras: o beisebol e a segregação racial nos Estados Unidos. Café História – história feita com cliques. Publicado em: 14 mai. 2018. 

WILSON, Jhonathan. A pirâmide invertida: a história da tática no futebol. Tradução André Kfouri. 1. ed. Campinas, SP: Grande Área, 2016.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel José de Assis Farias

Licenciado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e apaixonado pelo esporte, futebol, História e o Corinthians. Assim, utilizei minhas paixões como tema de TCC, e deste modo, produzindo a pesquisa: "O esporte como ferramenta de contestação e mobilização social e política: A Democracia Corinthiana (1981-1985) e o apoio ao movimento popular 'Diretas Já'".

Como citar

FARIAS, Gabriel Assis. Os usos políticos do esporte: a instrumentalização esportiva no decorrer da história. Ludopédio, São Paulo, v. 134, n. 60, 2020.
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