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O volante que encarou os verdugos

Roberto Jardim 14 de setembro de 2019

É possível que tenha sido uma jogada do destino. Afinal, não é todo prata da casa que volta a defender o time do coração e, de lambuja, faz parte de uma conquista histórica. Ainda mais em um ano tão conturbado politicamente, em uma equipe deu um pouco de alívio e esperança a quem sofria com a opressão vigente e na qual boa parte dos integrantes tinha pensamentos tão próximos que quase foram porta vozes da resistência à ditadura civil-militar instalada no Uruguai desde 1973.

Foi assim, porém, que ocorreu com o camisa 4 do Democracia Fútbol Club.

– Tenho orgulho de ter participado daquele momento. Muita gente fala que fomos heróis. Outros dizem que fomos irresponsáveis, que não pensamos em nossas famílias. Acho que fomos uruguaios. Tentamos fazer o melhor por nós mesmos – afirmou Pedro Graffigna, em entrevista ao site Vice, em janeiro de 2017.

Atacante de origem transformado em homem de meio-campo, Pedro foi um dos símbolos daquela conquista. Até porque, como qualquer outro opositor do regime, ainda mais um homem declaradamente de esquerda, como ele, estava na mira dos verdugos uruguaios desde a volta ao país, em 1975.

Cria da base violeta, mas profissionalizado no Chile, em 1966, ele entrou para a história do Defensor Sporting Club, na época ainda Club Atlético Defensor, como um dos protagonistas do título de 1976. O motivo: aquela equipe foi a primeira de um cuadro chico a ser campeã desde a profissionalização do futebol uruguaio, em 1932 (até então, Peñarol e Nacional intercalavam as conquistas da taça).

E o título veio justamente para uma equipe com ligações à esquerda, passando pelo técnico José Ricardo de León, também personagem deste livro, e chegando a boa parte do plantel. Aquela campanha, que se encerrou com a volta olímpica ao contrário, uma marca registrada do Tuerto, apelido do Defensor, desde então, iniciou a carreira antissistema do clube e da torcida, algo que marcou para sempre aquele plantel.

Por conta dessa conquista, Pedrín, como é chamado pelos amigos, foi o primeiro “contratado” para este time de jogadores politicamente engajados. Afinal, foi o primeiro a ser entrevistado, em julho de 2016, por telefone e e-mail, para a reportagem La Vuelta Olímpica al Revés, publicada no Medium, no livro Além das Quatro Linhas e neste volume, na seção Acréscimos.

Como falamos no começo, certamente o destino deu um empurrão para que Pedro estivesse naquele grupo que sempre faz questão de elogiar. Isso porque, sendo uma pessoa de forte posicionamento político, o ex-jogador envolveu-se na oposição a outro regime militar, comandado pelo general e ditador Augusto Pinochet, no Chile, quando achou melhor voltar ao seu país, com a mulher e cinco filhos.

Calhou de ser chamado pela direção do Defensor em 1974 para passar a integrar o plantel violeta, mesmo sendo considerado um jogador “complicado”, por conta do seu posicionamento. Com a chegada do Profe de León, em janeiro de 1976, incorporou-se à equipe que fez mágica.

Cria de Franzini, sucesso no Chile

A volta ao Defensor foi de certa forma um retorno às origens. Isso porque Pedro Ariel Graffigna nasceu em 23 de setembro de 1945, nas imediações do Parque Rodó e do estádio Luis Franzini, casa do então Club Atlético Defensor. Filho de pai pescador e mãe empregada doméstica, teve infância pobre, intercalada entre as arquibancadas violetas, a Playa Ramires e o Club de Golf.

– Conheci os dissabores da pobreza. Mas, como toda criança inquieta, tive sonhos de melhorar de vida. E vi no esporte uma chance, já que estava a poucas quadras de um clube de futebol e de um de golfe, uma chance. O futebol me brindou com tudo o que conquistei. Graças a ele, pude conhecer o mundo – lembrou-se, na entrevista de 2016.

Morando a duas quadras do estádio do Tuerto, não teria como torcer por outro time de Montevidéu, mesmo crescendo em meio a títulos e mais títulos de Peñarol e Nacional. Ganhava algum dinheiro, para reforçar o orçamento doméstico e poder ir aos jogos do seu time, trabalhando como caddie no outro clube próximo.

Além de assistir às partidas do Defensor, acabou entrando para a base violeta, no começo dos anos 60. Ainda nas categorias inferiores foi negociado para outro clube montivedeano, o Canillitas, mais ou menos entre 1964 e 1966 – ele não lembra a data certa. Recorda-se, porém, de como trocou a capital charrua por La Calera, próximo a Valparaíso, no Chile:

– Certa vez, em um amistoso internacional, estavam no estádio dirigentes do Unión La Calera, do Chile. Nesse jogo, fiz dois gols. Fui contratado quase na hora.

Assim, chegou ao país de Violeta Parra em 1966. Fez sucesso no pequeno Cementero, apelido do clube chileno pelo qual se profissionalizou. Em três temporadas, foi goleador, jogando e todas as posições do ataque:

– Comecei na ponta-direita, mas atuei também de centroavante e até de ponteiro esquerdo. Foi a fase em que mais marquei gols na carreira – recorda, por e-mail.

O sucesso foi tanto que acabou sendo contratado por empréstimo pelos Rangers de Talca para disputar a Libertadores de 1970. O problema é que o Rojinegro foi eliminado na primeira fase, ficando em último num grupo que tinha, além de seu conterrâneo Universidad de Chile, os paraguaios Guaraní e Olimpia e os colombianos Deportivo e América, ambos de Cali. Após voltar ao Unión, ficou mais um ano e completou a passagem chilena jogando pelo Portuario, de Antofagasta, e pelo Santiago Wanderers, de Valparaíso.

Além do futebol, sua estada no país andino foi marcada também pela participação política. Principalmente após a eleição do médico socialista Salvador Allende, em 1970. Pensando na sua mulher, chilena, e nos filhos, todos nascidos na terra de Pablo Neruda, Pedrín acreditava que o país viveria um período de desenvolvimento social, e defendia Allende.

– Foi um período curto, mas marcado por melhorias para o povo chileno, principalmente no que se refere à educação e alimentação para as crianças pobres – defende.

Como todos já conhecem a história, Allende não ficaria muito tempo no poder. Nem Pedro e sua família, no Chile.

Escapando de Pinochet, caindo nas mãos de Bordaberry

Se tudo ia bem para Pedrín dentro de campo no começo dos anos 70, o mesmo não se pode dizer da situação do Chile. Com a eleição de Salvador Allende para a presidência, a oposição, com forte apoio dos EUA, começou a agir. Principalmente depois que o médico socialista começou a estatizar empresas e a trabalhar pelos desfavorecidos – aliás, uma prática comum para o político, que atendia a população pobre de graça em uma clínica própria desde o começo da carreira médica.

As pressões contra Allende aumentaram em 1972, com ameaças de golpe partindo das Forças Armadas. A situação foi contornada pelo então comandante do Exército chileno, general Carlos Prats, que declarou publicamente que as tropas manteriam inalterada sua posição apolítica e profissional, defendendo a Constituição e, logicamente, o governo Allende.

Menos de um ano depois, porém, em agosto de 1973, Marinha e Força Aérea começaram a planejar a derrubada do primeiro presidente socialista eleito na América do Sul. Além dos conluios na caserna, o país passava por forte crise econômica – muito por conta dos empresários, que passaram a esconder produtos. As duas Armas conseguiram forçar a renúncia de Prats e, em seu lugar, no dia 23, assumiu outro general, até então, leal ao governo.

Allende não esperava a traição, mas Augusto José Ramón Pinochet Ugarte, o militar que ficou no lugar de Prats, virou a casaca e pouco mais de duas semanas depois comandou o golpe. Na madrugada de 11 de setembro, as tropas tomaram as ruas de Santiago e outras cidades importantes do País. Numa ação rápida e violenta, em menos de dez horas, os homens comandados por Pinochet tomaram o palácio La Moneda e encontraram Allende morto.

Às 18h daquele mesmo dia, a Junta Militar decretava “estado de guerra”, incluindo aí o estado de sítio – instrumento que suspende os direitos e garantias dos cidadãos, além de fechar os poderes legislativo e judiciário.

A perseguição aos opositores foi imediata. Uruguaio e jogador de futebol, Pedro achou que teria um salvo-conduto para se pronunciar contra a situação. A cada entrevista, fazia questão de demonstrar o descontentamento com o regime recém-instalado. Sentia-se intocável. As prisões de dois amigos, contudo, fizeram-no mudar de ideia.

Em um gesto valente, o atacante resolveu visitar os amigos na prisão de Playa Ancha, em Valparaíso. Ali, constatou o sofrimento dos dois, visivelmente abatidos pelas sessões constantes de tortura. A partir desse encontro, o desejo de deixar o país andino se concretizou. Pedrín temeu não por si, mas pela companheira e por seus filhos.

Ao fim do contrato, resolveu trocar a litorânea Valparaíso, na costa do Pacífico, pela ribeirinha Montevidéu, banhada pelo rio da Prata. No seu país natal, porém, também iria encontrar outra ditadura. Afinal, desde julho de 1973 o Uruguai vivia um regime fechado, comandado pelo civil Juan María Bordaberry e pelas Forças Armadas.

Mal chegou à sua nova morada, já recebeu o cartão de visitas ditatorial. Em frente à sua casa, na Boulevard Artigas, uma das vias mais movimentadas da capital charrua, foi parado por policiais e revistado. Com ele foram encontradas sua identidade chilena (ainda não havia tirado novos documentos uruguaios) e um panfleto denunciando a ditadura local.

Resultado: passou 48 horas no cárcere, tendo que se explicar.

Mesmo com a prisão, Pedrín não baixou a cabeça. Continuava questionador como sempre. Em 1975, liderou um duro conflito entre jogadores e direção do Defensor. Sua postura quase levou ao rompimento do contrato. Em janeiro do ano seguinte, porém, com a chegada do técnico José Ricardo de León, a situação se acalmou.

Avisado de que teria que lidar com um jogador rebelde, De León chamou Pedro para conhecê-lo e apresentar seu projeto. O plano era mudar a forma de a equipe jogar, e perguntou se podia contar com Pedro, agora já volante. O meio-campista gostou do que ouviu e disse que estava à disposição.

Defensor na mira dos verdugos

O campeonato de 1976, aquele que levou o Defensor a dar a volta olímpica ao contrário, começou em março. Aquele ano também foi marcado pelo recrudescimento do regime uruguaio, com a derrubada de Bordaberry e a entrada definitiva dos militares no poder. E Pedrín foi avisado para que deixasse de lado sua porção contestadora e se concentrasse nos jogos.

– Os setores de inteligência da polícia e do Exército viviam dizendo que iam me prender por ser comunista. Controlavam-me o tempo todo, é certo, mas não podiam me levar porque eu era um jogador que, além do mais, nessa época, estava em excelente fase – lembrou numa das conversas de 2016.

Acreditando-se novamente intocável, o volante que usava a camisa 7 violeta aproveitava cada oportunidade para tentar mandar um recado de resistência. Nas entrevistas, queria sempre falar além do futebol, recorda no livro Una Vuelta a la Historia – Defensor del 1976: Memorias de una Hazaña em Dictadura, de Santiago Díaz:

– Eu não queria falar tanto de futebol. Queria aproveitar para falar de questões mais importantes.

A cada gol ou comemoração em finais de partidas, procurava colocar-se à frente dos fotógrafos e festejava com o punho direito cerrado erguido. Fazia alusão ao gesto socialista que ganhou o mundo esportivo quando dois atletas negros norte-americanos, Tommie Smith e John Carlos, ambos militantes do movimento contra a segregação racial, ergueram seus braços para comemorar a conquista das medalhas de ouro e bronze nos 200m nos Jogos Olímpicos da Cidade do México, em 1968. Alguns retratistas não faziam as fotos, para preservá-lo. Os que faziam, seus jornais não publicavam.

Não era só ele, porém, que estava na mira das forças repressivas. Outros jogadores do Tuerto também passaram por maus bocados. O primeiro deles foi Julio Filippini, de apenas 19 anos. Na quarta rodada do Uruguaio, contra o Nacional, no Centenário, Filippini foi o responsável pelo empate em 2 a 2 com o Tricolor, depois de o Defensor estar perdendo por 2 a 0. Marcou um gol e sofreu um pênalti – por conta disso, ficou conhecido por Gol y Medio.

Na final do jogo, dedicou a grande atuação ao irmão Eduardo – integrante do grupo guerrilheiro MLN, do qual fez parte o ex-presidente Pepe Mujica – e a todos os companheiros presos na penitenciária localizada na sugestiva cidade de Libertad. Foi o que bastou para ser procurado pela polícia para se explicar. Aquela foi a primeira e última partida de Julio como profissional. Como era da base e só jogou porque os atacantes estavam lesionados, após a conquista do título, resolveu pendurar as chuteiras por medo.

Pouco depois, o lateral-esquerdo Javier Beethoven foi detido quando brincava com o filho pequeno em uma pracinha, na Ciudad Vieja. Quando os agentes conferiram sua identidade, porém, acabou liberado. Não recebeu nenhuma explicação sobre o motivo da detenção.

Depois do título, durante uma partida contra o Peñarol, pela Liguilla – torneio que definia os participantes da Libertadores –, Pedrín viria a ser novamente preso. Um oficial chamou um dos bandeirinhas e acusou o volante de tê-lo insultado ao entrar no gramado. O integrante da arbitragem avisou o juiz da partida que não deixou que o levassem. Após o confronto, o vestiário violeta foi invadido por agentes do regime e Pedrín acabou detido.

Foi levado para uma unidade da polícia dentro do estádio Centenário. Morto de frio e de fome, só foi liberado às 10h do dia seguinte. Uma hora e meia depois, foi novamente preso, em casa, dessa vez com mais agressividade.

– Dessa vez pensei que havia chegado a minha hora – recorda.

Porém, com atuação dos dirigentes do Defensor e do atacante Luis Cubilla, seu companheiro de equipe e declaradamente de direita, conseguiu a liberação poucas horas depois. No ano seguinte, a ditadura mais uma vez agiu contra nosso camisa 4. Na véspera dos jogos contra Boca Juniors e River Plate, em Buenos Aires, pela Libertadores de 1977, teve seu passaporte apreendido, não podendo jogar contra os argentinos.
Por e-mail, Pedrín comentou a perseguição:

– Para as forças militares que comandavam o país, não convinha que uma equipe pequena estivesse indo bem nas competições.

Ao site Vice, o meio-campista lembra que a repressão fora dos gramados uniu o grupo de jogadores:

– Quando surgiram os primeiros relatos de prisões e torturas, jogadores que não se preocupavam com a ditadura começaram a entender que o problema era sério. Isso nos uniu. Claro que nem todos do time concordavam, mas muitos perceberam que não podiam mais cruzar os braços.

Antes das partidas, no vestiário, os boleiros começaram a entoar músicas do uruguaio Alfredo Zitarrosa, perseguido pelo regime e, à época, exilado na Espanha. Suas composições estavam proibidas na Argentina, no Chile e, claro, no Uruguai.

Do futebol ao Carnaval e às histórias

As boas atuações de Pedro naquele 1976 despertaram interesse de clubes do Exterior. Sua postura contestadora, porém, impediu as contratações. A primeira grande transferência, para o Olimpia, lhe daria o melhor salário da carreira, mas a negociação parou quando os dirigentes do clube paraguaio ficaram sabendo do ativismo político do jogador. Vale lembrar que o Paraguai também vivia uma ditadura, iniciada em 1954.

Assim, atuou até 1978 no Defensor, transferindo-se para o argentino All Boys, no ano seguinte. Voltou ao Uruguai para atuar pelo Rampla Juniors e por equipes pequenas do Interior, encerrando a carreira em 1985. Após uma tentativa relâmpago como técnico, 23 dias à frente do Club Atlético Progreso, abreviada pelas constantes queixas de falta de estrutura para os atletas, desistiu da bola.

Primeiro, arrumou trabalho no jornal do Partido Comunista charrua. Depois enveredou por outra paixão uruguaia e popular, o Carnaval. É, atualmente, o organizador da festa no Velódromo de Montevidéu. Vive em uma pequena chácara a 27km da Capital. Por conta da volta dos filhos para o Chile, após o fim da ditadura de Pinochet, tem pouco contato com eles.

Afastado da militância, hoje, gosta de contar aos mais novos suas histórias de resistência, na tentativa de inspirar a manutenção da luta por uma vida melhor.


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A série tem a colaboração de Diego Figueira, na revisão dos textos, e do craque do traço Gonza Rodriguez, nas ilustrações.

A ideia é manter o Democracia Fútbol Club na ativa. Queremos ir atrás de mais histórias de times e clubes, de torcedores e torcidas. Afinal, como disse o técnico uruguaio Óscar Tabárez, o futebol é uma excelente desculpa para falarmos de outros assuntos. E é sobre isso que queremos falar. Futebol e outros assuntos. Assim, estamos aqui, pedindo uma força para vocês! Apoie o Democracia Fútbol Club.

 

 

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Roberto Jardim

Jornalista, dublê de escritor e pai da Antônia. Tudo isso ao mesmo tempo, não necessariamente nessa ordem. Autor dos livros Além das 4 Linhas e Democracia Fútbol Club.Como fazer jornalismo independente, mantém uma campanha de financiamento coletivo no Apoia.se, que ajuda na produção do projeto Democracia Fútbol Club, que tem o objeto de contar a história de jogadores e técnico, times e clubes, torcedores e torcidas que usaram a desculpa do futebol para irem além das quatro linhas.

Como citar

JARDIM, Roberto. O volante que encarou os verdugos. Ludopédio, São Paulo, v. 123, n. 16, 2019.
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