92.10

O futebol é nosso!

Victor de Leonardo Figols 13 de fevereiro de 2017

É inegável que vivemos uma onda conservadora se espalhando por todo mundo. Discursos nacionalistas ecoam na Europa contra os refugiados sírios. Nas Américas, um engravatado de topete amarelo brada contra nós latino-americanos, em especial contra os mexicanos. O mesmo engravatado ainda profere discursos racistas, machistas e homofóbicos, e algo semelhante aparece na voz de um deputado por aqui.

Esse mesmo cenário parece tomar conta do futebol. Nos estádios é possível ouvir diversos gritos preconceituosos contra a comunidade LGBT, contra as mulheres, e contra os negros. Mas ainda assim é possível enxergar alguma esperança vinda das arquibancadas.

Divulgação da da torcida Bukanera da Rayo Vallecano
Divulgação da torcida Bukanera do Rayo Vallecano

No último dia de fechamento da janela de transferência na Europa, a torcida do pequeno clube de Madrid, o Rayo Vallecano, mostrou a sua força contra essa onda conservadora e impediu que o clube contratasse o jogador ucraniano, Roman Zozulya. O motivo, Zozulya é neonazista.

Na verdade, o clube realizou a contração do jogador, por empréstimo, vindo do Real Betis, de Sevilla. Todavia, já em sua apresentação, os torcedores do Rayo, os Bukaneros, mostraram que o jogador não seria bem-vindo no bairro operário de Vallecas. Logo em sua chegada para assinar o contrato, o jogador ouviu dos torcedores que não teria lugar na equipe, que não vestiria a camisa do Rayo, que não frequentaria o bairro. E em 15 horas, o Rayo devolveu o jogador ao Betis, e definitivamente, os Bukaneros mostraram que Vallecas e o Rayo não são lugares para neonazistas.

O ato dos torcedores do Rayo mostra como futebol não está à parte da política, pelo contrário, futebol e política andam juntos. A própria história do Rayo e dos Bukaneros mostra como clube e torcida construíram as suas posições políticas. O Rayo Vallecano nasceu, em 1924, no bairro operário de Vallecas e rapidamente assumiu um papel muito importante para a região. O Rayo virou o orgulho da classe trabalhadora daquele bairro da periferia de Madrid, rapidamente o clube passou a representar o bairro. Como o historiador Eric Hobsbawm bem definiu, o futebol é a “religião leiga da classe operária”, e no caso de Rayo não foi diferente. Naqueles anos 1920, na Espanha pré-Guerra Civil, as ideias anarquistas, comunistas e socialistas tomavam conta da classe operária e o futebol era a principal, se não a única forma de lazer, e em alguns casos, a única forma de expressão política. Foi nesse cenário que clube e os seus primeiros torcedores se encontraram, foi nesse cenário que a identificação com o bairro se deu. A identificação foi tão grande que hoje em dia é possível dizer que Vallecas é Rayo, e Rayo é Vallecas.

Nas arquibancadas, a pauta antifascista somou-se a outras, como o combate a homofobia, ao machismo e ao racismo. Os Bukaneros também passaram a questionar o modelo de futebol negócio, que tomou conta do futebol anos 1990 em diante. Hoje a torcida tem como lema: “Contra el racismo, la represión y el fútbol negocio”, e é das arquibancadas onde também se pode ouvir a música que diz o posicionamento político dos torcedores: “Somos los hinchas mas anarquistas. Los mas borrachos, los mas antifascistas. Nuestro Rayito revolucionário. ¡Todos los fachas: Fuera de mi barrio!”.

Essa música mostra claramente as posições da torcida, principalmente a orientação antifascistas, mas também a valorização do bairro de Vallecas. Todavia, não é só os torcedores que assumem tal postura, o próprio clube, em acordo com a empresa de material esportivo, a Kelme, criou camisas que apoiavam a causa LGBT, além de uma camisa feita para a campanha mundial de combate ao câncer de mama, o Outubro Rosa. Tanto a torcida, quanto o clube, promovem ações de diferentes tipos, como a campanha contra a exploração de mão-de-obra infantil, ou como a campanha de combate a AIDS. Os jogadores fazem ajuda periódica e ajudam abrigos e asilos do bairro.

Em 2014, diante da crise econômica que atingiu a Espanha, a moradora do bairro Vallecas, Carmen Martínez Ayudo de 85 anos, foi notificada pelo governo que seria despejada de sua moradia por causa de dívidas não pagas. Diante da situação, clube, torcida, jogadores e comissão técnica resolveram ajudar. Jogadores se mobilizaram a encontrar uma nova casa para senhora Carmen, e o técnico, Paco Jémez, se comprometeu a dar uma ajuda de custo à moradora do Vallecas. A ação aproximou ainda mais o bairro à torcida, ao clube, e colocou os jogadores próximos da sua gente, da torcida e do bairro.

É em Vallecas que a comunidade, a torcida e o clube se misturam, e formam uma coisa só. Esse é um dos motivos que os Bukaneros gritavam: “Vallekas no es lugar para nazis”, quando Zozulya chegou em território vallecano. Os Bukaneros são tão organizados que elaboraram um dossiê onde é possível entender os argumentos da torcida, e mostrar para a grande mídia que de fato Zozulya possui fortes ligações com grupos neonazistas ucranianos.

O dossiê dá conta que antes mesmo do acordo ser selado entre o Rayo e Zozulya, um representante do jogador viu algumas manifestações nas ruas de Vallecas que mostravam o descontentamento da torcida, e mostrou-se preocupado, afirmando que naquelas condições o contrato não seria formalizado. Entretanto, todas as partes seguiram com o acordo, e é neste ponto que os torcedores criticam também a diretoria, por levar a diante a contratação do jogador, mesmo sabendo da posição da torcida.

Em uma segunda parte, o dossiê trás uma série de documentos sobre a ação e a orientação política do jogador ucraniano, boa parte delas disponíveis publicamente na internet em suas redes sociais e em sites de notícia. Em resumo, o documento produzido pelos Bukaneros mostra que Zozulya é um ultranacionalista de direita, com ligação com grupos neonazistas e paramilitares da Ucrânia. O documento dá conta que quando atuava pelo FC Dnipro Dnipropetrov (2011-2016), Zozulya se aproximou do grupo White Boys, um grupo de torcedores que usam símbolos da guarda pessoal de Adolf Hitler, a Schutzstaffel (SS) em suas faixas, além de ter membros pertencentes ao Batalhão Azov, um grupo paramilitar reconhecidamente nazista que atua na cidade de Mariupol, combatendo a República Popular de Donetsk, uma região separatista que declarou independência da Ucrânia em 2014.

Zozulya pode ser visto em vídeos no canal do YouTube do Batalhão Azov, pedindo apoio e doações ao grupo. O jogador também promoveu eventos para levantar fundos para o grupo, além de ter feito doações em dinheiro para os soldados. Zozulya também já associou a sua imagem a Stepan Bandera, o líder de uma organização nacionalista que colaborou com a Alemanha Nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Definitivamente, Zozulya não é apenas um simpatizante do nazismo, o jogador é um colaborador assíduo.

Por fim, a torcida conclui reiterando o compromisso dos torcedores do Rayo com o bairro, com as classes trabalhadoras, além da luta contra o racismo, contra a homofobia e contra o futebol moderno. Assim, a contratação de Zozulya se mostra totalmente oposta ao posicionamento da torcida, do Rayo.

Em meio ao impasse da contratação do jogador, o Real Betis entrou em campo na última semana com os jogadores vestindo uma camisa com a frase “Somos todos Zozulya”, a mesma frase foi usada no Twitter oficial do Ministro del Interior, Juan Ignacio Zoido. Aliás, Zoido pertence ao Partido Popular, um reconhecido partido de direita que nasceu após a ditadura de Francisco Franco, e abriga até hoje inúmeros adeptos do franquismo. Já o presidente da Liga de Fútbol Profesional, Javier Tebas, declarou que punirá os torcedores do Rayo que ameaçaram o jogador. É sempre bom lembrar que Tebas é um nacionalista de extrema direita, que endossa discursos xenófobos e racistas, e acredita que a Espanha precisa de alguém como a francesa Marine Le Pen. Já Zozulya se diz injustiçado e ameaçado, já que segundo ele, lhe tiraram o direito de trabalhar e o colocaram em risco.

É verdade que em Vallecas o jogador nunca foi ameaçado pela torcida, mas de qualquer forma, Zozulya não é bem-vindo por lá. Por uma questão de princípios, os Bukaneros possuem uma orientação política clara, mas também respeitam a tradição e as lutas de um bairro operário, e é por isso que se mostraram contrários a contratação do jogador.

Os Bukaneros mostraram que a torcida ainda tem força em um mundo onde o futebol negócio é o modelo, mostraram que o futebol tem que ter proximidade com o seu local de origem, mostraram que o futebol ainda é nosso e que eles não passarão!

Mais sobre a história do Rayo Vallecano:
Copa 90 – This is Rayo Vallecano: The Pride of a Working Class Neighbourhood

https://www.youtube.com/watch?v=jYHi8PudfTE
Atrox CF – Rayo Vallecano e seus Bukaneros

Dossiê Zozulya:
La franja no se mancha de racismo

Vale a leitura:
Un fútbol apolítico de neonazis y machistas

Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. O futebol é nosso!. Ludopédio, São Paulo, v. 92, n. 10, 2017.
Leia também:
  • 167.30

    “O racismo é o normal na La Liga”

    Victor de Leonardo Figols
  • 161.14

    Pelo futebol, pelo direito de torcer, pela democracia!

    Victor de Leonardo Figols
  • 159.5

    As camisas de Bolsonaro (ou muito além de uma coleção de camisas de futebol)

    Victor de Leonardo Figols