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O espelho de Narciso: reflexões sobre o VAR

Um dos locais de socialização do futebol que eu tive aconteceu com o meu pai. Minhas lembranças da infância são de ouvir, aos domingos, os jogos e muitos clássicos pelo rádio. Na década de 1990, a televisão passava os jogos aos sábados e as melhores partidas ficavam para o domingo sem transmissão pela televisão.

Dessa importante experiência recordo do meu pai, inúmeras vezes, falar: “este árbitro quer aparecer”. E completava que o bom árbitro era exatamente o oposto daquele que queria aparecer. Deveria ser invisível aos olhos de todos/as que assistissem ou jogassem aquela partida.

Eis que agora temos o árbitro de vídeo. Parto, neste texto, da reflexão que o árbitro de vídeo é o que coloca a arbitragem na primeira fila dos interesses do jogo de futebol. E isso, para mim, tem implicações que vão para além da chave da justiça do jogo e de que “o meu time não será prejudicado”.

Equipe do VAR em partida da Copa do Brasil. Foto: Lesley Ribeiro/CBF.

Também deixo claro que a implementação do VAR parece ser um caminho sem volta. E, portanto, que deveria ter uma maior participação de todos os agentes que compõem o mundo do futebol no sentido de aprimorá-lo. Com isso, quero ressaltar que a presença da tecnologia no esporte de alto rendimento está presente há tempos.

E esta tecnologia tem alterado, até de certa forma invisível, o modo como se pratica o esporte. Todos os materiais que integram um jogo de futebol são influenciados pela tecnologia. Da bandeira de escanteio ao cuidado com o gramado, da bola aos uniformes, das chuteiras ao monitoramento do desempenho dos atletas.

Negar a tecnologia é, de fato, negar o próprio esporte. Quero, portanto, ser mais explícito do que fui anteriormente: sou contra o modo como o VAR vem sendo utilizado. A meu ver, a sua implementação, deveria ter sido feita por meio de muitos testes e debates. Quando apareceu na final do mundial de clubes de 2016 anunciava-se ao mundo, sem que todos percebessem, que por trás do discurso da justiça vinha acoplado ao recurso da imagem outras injustiças.

Para sustentar meu argumento recorro a instigante e provocante análise de Pierre Bourdieu em seu livro Sobre a televisão, publicado no Brasil em 1997, pela editora Zahar. Bourdieu (1997, p. 24) afirma que:

“[…] a televisão pode, paradoxalmente, ocultar mostrando, mostrando uma coisa diferente do que seria preciso mostrar caso se fizesse o que supostamente se faz, isto é, informar; ou ainda mostrando o que é preciso mostrar, mas de tal maneira que não é mostrado ou se torna insignificante, ou construindo-o de tal maneira que adquire um sentido que não corresponde absolutamente à realidade.”

Quando uma imagem vai para o VAR perde-se o contexto, congela-se a imagem. Em caso de impedimento é traçada uma linha imaginária para provar a verdade sobre a jogada. A velocidade do lance ganha outra dimensão estética, a do slow motion (faço um convite: ver o jogo inteiro em slow motion), do zoom. Enfim, do detalhe que a olho nu não se pode captar. Não seria mais um esporte dos seres humanos?

A esta dramatização Bourdieu (1997, p. 25) afirma que “a televisão convida à dramatização, no duplo sentido: põe em cena, em imagens, um acontecimento e exagera-lhe a importância, a gravidade, e o caráter dramático, trágico.” E toda esta dramatização não vem dissociada da interpretação de quem está no estúdio. A decisão não é mais do árbitro. Alguns dirão: não há mais possibilidades de manipulação dos resultados! Os erros acabaram. Eu direi que há mais possibilidades, mas como isso seria possível? Temos, agora, mais de três pessoas, distantes do estádio em que acontece a partida que definirá muitas das decisões do que acontece no jogo. Será a opinião de quem está fora do jogo, sem acesso ao que a televisão não mostra, que opinarão sobre o destino do jogo. A esta suposta neutralidade pode ser mais fácil de manipular as decisões. Dar ou não o cartão? Veja o lance pelo VAR e a decisão será a mais correta. Será?

Volto a Bourdieu quando afirma que o “o mundo da imagem é dominado pelas palavras.” Se assim não fosse, o VAR seria apenas o vídeo e a comunicação com os auxiliares que estão no jogo. O exemplo desta dimensão aconteceu no jogo entre Boca Juniors e Cruzeiro pela Copa Libertadores de 2018. Dedé sobe para disputar uma bola no alto e sem ver a aproximação do goleiro do Boca, o Andrada, choca-se violentamente com o mesmo. Ao ver pelo VAR o árbitro expulsa o Dedé. Veja, nem falta foi. Foi um acidente de trabalho, como os comentaristas gostam de pontuar.

Lance que gerou a polêmica e a expulsão de Dedé. Foto: Bruno Haddad/Cruzeiro E.C.

Além disso, como disse em outro texto, o VAR não resolve 100% dos erros de impedimento. Como o VAR, mais do que antes, haverá um foco em se buscar o culpado pela derrota. O impedimento milimétrico não marcado será ainda mais questionado. É preciso ter claro o que Bourdieu (1997, p. 28) afirma sobre os sociólogos: “tornar extraordinário o ordinário; evocar o ordinário de maneira que as pessoas vejam a que ponto é extraordinário.” O impedimento que é uma dimensão ordinária do jogo será transformado e visto como algo extraordinário e, que por sua vez, determina por si só o resultado final.

O recurso do VAR produz o efeito de real. Este conceito é utilizado por Bourdieu (1997, p. 28) a partir dos críticos literários que ressaltam os perigos do uso ordinário da televisão. É óbvio que o foco do texto do Bourdieu não é sobre o futebol, mas suas reflexões nos ajudam a pensar. Afinal, este efeito do real “pode fazer ver e fazer crer no que faz ver.” Se a consulta ao VAR está centrada apenas nos árbitros, tanto em campo quanto fora dele, continuamos a deixar de fora os protagonistas. Em suma, “as escolhas que se produzem na televisão são de alguma maneira escolhas sem sujeito.” (1997, p. 34). Por que não pedir a consulta por meio do capitão da equipe? Ou do treinador? Para não alterar a dinâmica e banalizar as jogadas teria que haver uma restrição ao pedido.

Para retomar o ponto de início do texto, afirmo que o VAR é este espelho de Narciso. Coloca o árbitro no centro do espetáculo futebolístico quando, a meu ver, deveria deixa-lo invisível. Parar o jogo e ir ao lado do campo cria rupturas no modo de jogar futebol. Se Narciso acha feio o que não é espelho o futebol parece não conseguir escapar desta dimensão narcisista em nome da justiça e ao fazê-lo torna-se seu refém.

O ponto que pretendi ressaltar aqui é que a tecnologia potencializa a transformação do futebol ao mesmo tempo em que ela, materializada por meio do VAR, aprisiona o jogo. Quer ser mais real do que a realidade. O futebol transforma-se definitivamente em um produto da televisão. Sua existência condiciona-se, funde-se cada vez mais ao aparato tecnológico e torna-se cada vez mais distante daqueles que fazem o espetáculo do futebol: atletas, comissão técnica, trio de arbitragem no campo, jornalistas e torcedores.


BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

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Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Como citar

GIGLIO, Sérgio Settani. O espelho de Narciso: reflexões sobre o VAR. Ludopédio, São Paulo, v. 112, n. 13, 2018.
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