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“No existen ex-abogados” ou sobre ser e não ser jogador de futebol

Escrevo esse texto após uma recente experiência de dez meses de doutorado sanduíche[1] em Buenos Aires, Argentina. Lá, como aqui no Brasil, não são poucos os meninos[2] que sonham em ser jogador de futebol. No caso, jogador profissional[3]. Talvez ninguém sonhe em ser jogador de várzea ou peladeiro de fim de semana. Isso porque, geralmente, já o são.

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Meninos jogando bola na quadra e no campo atrás do Estádio Arquiteto Ricardo Etcheverry, durante uma partida entre Club Ferro Carril Oeste e Sportivo Estudiantes de San Luís. Foto: Marina de Mattos Dantas.

Muitos meninos, depois de grandes, quase chegam a ser jogadores. Outros muitos transitarão entre esse quase e o ser. Alguns – poucos, como sabemos… – serão, durante algum tempo, jogadores. Alguns reconhecidos nas ruas, outros anônimos inclusive nos campos, sem o nome na camisa que os identifique para o público.

Uns irão para o futebol universitário, principalmente para as ligas dos Estados Unidos e Canadá. Outros para a várzea, onde podem ganhar uma graninha enquanto tentam inserir-se novamente no mercado de jogadores. Milhares de ex-quase-jogadores terão que pensar em trabalhar em outras atividades.

Mais cedo ou mais tarde todos esses voltarão a não ser. A maioria, novo demais ou rico de menos para aposentar-se, viverão de trabalhos temporários – os “bicos” – ou se dedicarão a outras profissões. Mas carregarão, geralmente, até o apito final de suas vidas, o “ex-jogador”, seja como substantivo ou adjetivo.

Uns são “ex” antes mesmo de chegarem a ser oficialmente profissionais. Outros, sendo e não sendo entre um e outro contrato. Outros ainda se recusam a não serem mais: lhes dizem “você não é” e seguem dizendo “sou sim!”. E insistem. Insistem, insistem, insistem…

Quando sua pesquisa se centra na vida de jogadores, todos tem uma história – de fama ou não – para te contar. Procurando jogadores, o que mais conheci em Buenos Aires foram ex-jogadores, em diversas situações dessas citadas anteriormente. Alguns em conversas rápidas, outros em longas e agradáveis entrevistas. Alguns de River, Independiente, outros de Ferrocarril Oeste, Gimnásia y Esgrima, Platense. Ex-jogadores dos anos 2010, 2000, 1990, 1980, 1970 e até de 1950. Da Primeira A, Primeira B[4] e das ligas interioranas, muitas vezes das três em tempos distintos da vida e de outras ligas mais.

Igualmente encontrei muitos no Brasil, claro. Também não é preciso procurar muito para encontrar ex-jogadores por aqui. Geralmente estão exercendo outras atividades ligadas ao futebol. São técnicos, preparadores físicos, preparadores de goleiros – psicólogos e nutricionistas, às vezes –, comentaristas, agentes de outros jogadores, professores em escolas ou universidades, advogados, contadores.

Todos têm seus planos para o agora, seja aos 20 ou aos 85 anos. Eles querem falar, diferentemente dos instruídos e amedrontados jovens que são aconselhados a somente se preocuparem em jogar bola.

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Jogadores no exercício da profissão. Partida disputada entre Club Ferro Carril Oeste e Sportivo Estudiantes de San Luís pela segunda divisão do futebol argentino, em abril de 2015. Foto: Marina de Mattos Dantas;

Em relação aos jogadores em atividade, esses são mais difíceis de se encontrar. Muitas vezes, estão acostumados a um padrão jornalístico de conversas ou mesmo indisponíveis para entrevistas – no Brasil, na Argentina, creio que em qualquer lugar do mundo. A indisponibilidade costuma ser proporcional ao valor atual da imagem do jogador. Quanto maior o valor da imagem, mais difícil é conseguir uma entrevista. Mas sempre existem os (poucos) disponíveis e solícitos.

Após um tempo longe da atividade dentro de campo, muitos acostumam-se a serem chamados de ex-jogadores. Muitos assim se auto intitulam. Poucos confrontam o que são e se provocam a serem outros e se reinventam…

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No palco, ex-jogadores em palestra sobre futebol e livros na 41ª Feria Internacional del Libro. Foto: Marina de Mattos Dantas.

Mas existe vida após o fim da carreira de futebolista. E foi conhecendo um pouco de uma dessas vidas que me surgiu uma provocação, dessas interessantes que aparecem nos momentos inesperados: “No existen ex-abogados[5]” – me disse um ex-jogador, referindo-se a essa condição que marca o final de uma etapa da vida do futebolista e me provocando a pensar um pouco mais sobre essas existências.

NOTAS:

[1] Bolsista do Programa Institucional de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE) da CAPES

[2] Também sonham as meninas, embora sejam menos estimuladas a isso, via de regra.

[3] Doravante mencionarei apenas “jogador” ao referir-me ao jogador profissional.

[4] Primera Divisíon e Primera B Nacional são, respectivamente, a primeira e a segunda divisão do futebol argentino.

[5] “Não existem ex-advogados”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marina de Mattos Dantas

Psicóloga (CRP 04/28.914). Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP (com estágio pós-doutoral em Estudos do Lazer na UFMG) e mestre em Psicologia Social pela UERJ. Professora na Universidade do Estado de Minas Gerais. Pesquisadora no Grupo da Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT/UFMG), no Grupo de Estudos Socioculturais em Educação Física e Esporte (GEPESEFE/UEMG), no Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social do Esporte (GEPSE/UFMG) e no Grupo de Trabalho Esporte e Sociedade do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO). Compõe a diretoria da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (ABRAPESP/2024-2025). É produtora no Programa Óbvio Ululante na Rádio UFMG Educativa e colunista no Ludopédio.

Como citar

DANTAS, Marina de Mattos. “No existen ex-abogados” ou sobre ser e não ser jogador de futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 74, n. 7, 2015.
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