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Homofobia institucionalizada na Copa da Rússia

Wagner Xavier de Camargo 8 de julho de 2018

Talvez nunca na história das Copas do Mundo de Futebol masculino tenha ocorrido uma edição em que o pressuposto básico fosse “ser heterossexual” a todo custo. Possivelmente, a Copa da Rússia entra para a história do esporte moderno como a mais homofóbica de todas. Castração de liberdades individuais e coletivas, leis contra a homossexualidade (e as livres expressões de gênero das sexualidades), perseguições políticas generalizadas, todos foram elementos constituintes do megaevento ocorrido na terra dos czares. É possível que tal evento esteja alinhado com a onda de conservadorismo que varre o planeta no momento; porém, o fato é que o governo de Vladmir Putin institucionalizou a homofobia: no país e na Copa.

Putin governa (ou participa do governo) da Federação Russa há quase vinte anos. Ele recebeu das mãos do ex-presidente Boris Yeltsin o comando de um país que fez questão de reorganizar a seu jeito. Com “mãos de ferro” e bem no estilo dos piores ditadores que governaram a antiga União Soviética, ele se rejubilou com a centralização do poder em torno de si, construindo uma imagem do macho dominador (de cavalos e mulheres), que não tolera divergências políticas e nem aceita retaliações de grupos minoritários espalhados pelo território. Menções ao governo de Josef Stálin (anos 1920) sempre foram uma referência, institucionalmente vangloriada. Putin foi criado e treinado nos entranhas de um sistema repressor, autoritário e conservador, tendo aprendido a perpetuar tais valores, acrescidos de uma boa dose de desconfiança e espionagem; afinal é também ex-agente da extinta agência de espionagem russa (KGB).

Presidente Putin no 68º Congresso da FIFA. Foto Kremlin
Presidente Putin no 68º Congresso da FIFA. Foto: Kremlin.

O governo russo tem sido sistematicamente denunciado por grupos ativistas e ONGs de todo o mundo pela violação de direitos de minorias (inclusive as sexuais). Além de promover o domínio militar-estratégico sobre muitos desses grupos em todo o território (práticas usuais de uma Rússia arcaica), impõe nada sutilmente uma hegemonia cultural e linguística dignas da época da russificação de molde stalinista. A situação na Chechênia é exemplar de como Putin tem lidado com a alteridade nos territórios sob sua influência: ano passado, ao vir a público uma denúncia sobre campos de concentração para homossexuais nesta região, o governo central de Moscou simplesmente se calou. A região da Chechênia, de maioria muçulmana, é uma área de conflitos armados há décadas e, nos últimos tempos, passou a cercear a liberdade de indivíduos autodeclarados homossexuais, literalmente caçando-os. Isso graças à “lei anti-propaganda gay” do governo Putin, assinada em 2013, e que foi ponto para vários protestos nos Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi-2014, como já mencionei em outro momento (CAMARGO, 2014).

A questão talvez seja que o governo russo não lida bem com minorias (étnicas, religiosas, sexuais, opositoras de seu regime) desde a desintegração do Império Soviético em 1991, e a situação fica cada vez mais grave em termos humanitários. Tal contexto se coloca, claramente, contra uma tendência mundial em tempos atuais de garantia de respeito aos direitos humanos básicos, de busca por legitimação de políticas sociais e inclusivas, de luta por reconhecimento de micropolíticas grupais, e de estabelecimento de igualdade e equiparação de gêneros.

Como já nos disse Daniel Borillo (2010), a homofobia (e, por extensão, todas as fobias e aversões aí agrupadas, como a transfobia, por exemplo) é um postulado de manutenção e proteção às fronteiras sexuais e de gênero, partícipes nos padrões da heteronorma socialmente instituída, que é disparada por meio de ofensas, xingamentos, piadas e violências generalizadas. No caso do esporte, a homofobia não se caracteriza somente como uma forma de resistência contra participação da vulgarmente chamada “cultura homossexual” no meio esportivo, mas funcionaria como elemento mantenedor da masculinidade hegemônica, das normas heterossexistas e do capital masculino, tão caros a ele.

No que diz respeito à Copa do Mundo de Futebol masculino em andamento, dizer que nela a homofobia vigorou por meio de atos como supressão das liberdades sexuais individuais e perseguição a ativistas de direitos humanos ou LGBTQ+ (lésbicas, gays, bissexuais, pessoas transgênero, queer e afins) não é suficiente para explicar o que de fato está em jogo no contexto.

A homofobia foi explicitamente institucionalizada pelo governo de Putin e isso quer dizer que se legitimou, oficialmente, a aversão aos sentimentos homoeróticos e homoafetivos, o rechaço às novas e outras formas de composição familiar (notadamente homoparentais) e a indignação à explicitação de desejos que não aqueles pautados em práticas heterossexuais. Isso tudo com o agravante do respaldo religioso cristão-ortodoxo da sociedade, com qual a maioria das pessoas parece se identificar.

Se a Federação Russa tem se desenvolvido econômica e financeiramente mediante as “políticas de austeridade” (que estão em moda no mundo), a sociedade russa tem regredido a estados bestiais quando permite que mulheres apanhem de seus maridos porque isso foi colocado na lei, pessoas com orientações sexuais e de gênero distintas das heteronormas se expressem erótico-afetivamente, ou mesmo que cânones mundialmente reconhecidos de sua cultura (como o famoso bailarino homossexual russo Rudolf Nureyev) sejam desrespeitados por terem orientações sexuais divergentes.

Num mundo global, em que distâncias terrestres são cada vez menores, amantes de esporte e do futebol, turistas e mesmo torcedores/as fanáticos/as estão em movimento e a Rússia é o palco de um dos maiores e mais importantes eventos esportivos do planeta. Não se pode perder de vista que sua função não é de ser apenas “uma organizadora de um mundial entre nações”; um evento como a Copa do Mundo tem um potencial educativo para além das possibilidades formais. Infelizmente, parece que ela e Putin perdem o bonde da história nesse sentido.

Presidente Putin no 68º Congresso da FIFA. Foto Kremlin
O presidente da FIFA Infantino entrega flâmula ao presidente Putin no 68º Congresso da FIFA. Foto: Kremlin.

E o pior, sem dúvida, é o que o futuro nos reserva: se colocamos a Rússia como organizadora da Copa do Mundo de Futebol masculino como a mais homofóbica de toda a história das Copas, imagine-se o que teremos no Qatar, em 2022.

Referências bibliográficas

BORILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica Ed., 2010.

CAMARGO, Wagner. “Esportes, Política de Estado e Homofobia institucionalizada: Sochi-2014”. São Paulo: Pontos de Vista (USP), v. 1. n. 1, 07.03.2014.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Homofobia institucionalizada na Copa da Rússia. Ludopédio, São Paulo, v. 109, n. 11, 2018.
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