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Quem conta a história das negras no futebol?

“É difícil você ter colhão, você ter coragem de você se expressar, porque você sabe que vai sofrer.”

Bruna Amarante, zagueira e capitã do E.C. São José, em entrevista ao projeto A Negra no Futebol Brasileiro[1].

 

“Se o espaço do futebol feminino já é um espaço fechado, difícil de entrar, se abordar uma temática dessas, o medo é muito grande de uma porta se fechar”.

Marcelo Carvalho, diretor e fundador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, em live no canal do Ludopédio[2].

 

O texto de abertura da série Racismo no Esporte, escrito pelas pesquisadoras Roberta Pereira da Silva, Bárbara Gonçalves Mendes e Marina de Mattos Dantas, traz o seguinte questionamento: “Por que a história da mulher negra no futebol é pouco encontrada em jornais e na produção científica?”[3]. Apesar de sabermos que a maior parte das jogadoras de futebol é formada por mulheres negras, pouco se fala das conquistas delas. O que sabemos sobre a luta destas jogadoras contra o racismo?

Quando se pensa em Seleção Brasileira de futebol feminino, os primeiros nomes que vêm à mente são de Marta, Cristiane e Formiga. Três mulheres reconhecidas mundialmente, que já defenderam algumas das maiores camisas do mundo e levaram o futebol feminino brasileiro a outro patamar. A Santíssima Trindade da Seleção Brasileira de futebol feminino é negra.

Além dessas três gigantes, outras mulheres negras ajudaram a construir a história do futebol no Brasil. Entre alguns dos nomes que devem ser lembrados estão Michael Jackson, Pretinha, Roseli, Fanta. Mais recentemente, temos Aline Pellegrino, ex-capitã da Seleção e atual Coordenadora de Competições Femininas da CBF. Na Bahia, podemos referenciar Dilma Mendes, ex-jogadora de futebol cuja história é uma referência sobre os tempos de proibição. Ela chegou a ter de se esconder da polícia e da família para poder jogar. Dilma concorreu ao prêmio de melhor treinadora do mundo no Fut7 e atualmente é secretária da Secretaria do Esporte, Lazer e Juventude (Sejuv) de Camaçari.

Dilma Mendes, ex-jogadora e atual treinadora de futebol. Foto: Divulgação.

A verdade é que o aparecimento do futebol no Brasil, no fim do século XIX, foi destinado ao lazer de homens brancos da elite do país[4]. A partir dos anos 1930, no entanto, houve uma popularização e homens negros e pobres se tornaram jogadores remunerados pelos clubes, alterando a dinâmica da relação entre clube e atleta. As mulheres, por sua vez, eram torcedoras das arquibancadas e fonte de beleza para as partidas, com atributos “naturais e femininos”, como escreve Aira Bonfim. Depois de aparecerem como uma “novidade” e chegarem a encher praças esportivas, as mulheres que entravam em campo passaram a ser consideradas nos anos 30 “subnutridas”, “esqueléticas”, “desprovidas de beleza estética”[5].

Esta ótica, amplamente divulgada em textos jornalísticos da época, estimulou a proibição da prática de futebol por mulheres até o fim dos anos 1970. No início da década de 1980, após a revogação do Decreto-Lei da proibição, Mariane Pisani afirma que em São Paulo o futebol feminino se tornou uma prática fetichista, jogado em sua maioria por prostitutas e vedetes que buscavam atrair o olhar masculino. Quando não performavam feminilidade ou não correspondiam ao padrão vigente, mulheres negras, lésbicas, nordestinas sofriam preconceito em raça, gênero e sexualidade[6].

Em 2001, uma matéria da Folha de S. Paulo noticiou que a Federação Paulista de Futebol instituiu “jogadora-objeto”[7] no Campeonato Paulista. As atletas que disputassem a competição teriam que ter “longos rabos-de-cavalo”, shorts curtos e usar maquiagem para garantir o “sucesso do torneio” e “atrair o público masculino”. Mesmo 80 anos depois, a mulher ainda era tratada como um objeto, uma decoração, para que pudesse atrair a atenção dos homens.

Desde a Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2019 e a divulgação da exposição “Contra-Ataque: As mulheres do futebol”, do Museu do Futebol em São Paulo, a proibição por quase 40 anos da prática de futebol por mulheres foi tema de matérias na TV, jornais e sites pelo Brasil. No entanto, ainda é raro encontrar registros do período pré-proibição de mulheres, especialmente negras, jogando bola.

A jogadora Formiga acompanha a exposição Contra-Ataque as mulheres do futebol, no Museu do Futebol. Foto: Divulgação.

O podcast História Preta, em sua série O Negro no Futebol, fez um episódio intitulado “Onde estão as Pretas?”[8]. Nele, Thiago André narra a dificuldade de encontrar histórias sobre mulheres negras no futebol e entrevista as pesquisadoras Bonfim e Pisani sobre as mulheres que jogaram futebol nos anos 30, mas cuja trajetória foi esquecida. Após a divulgação do episódio, um ouvinte cuja tia-avó Clarice[9] fundou um time de futebol formado por mulheres negras que trabalhavam como empregadas domésticas em plena proibição resgatou a história no episódio “O Negro no Futebol: Clarice”. Assim como essa, quantas outras histórias vivem escondidas em registros familiares – ou nem isso?

Enquanto Simone de Beauvoir falava que a mulher era sempre pensada em oposição ao homem[10], nunca com relação a ela mesma, Grada Kilomba vai além: a mulher negra é a antítese da branquitude e da masculinidade[11]. Em um ambiente como o futebol, cujo objetivo inicial no Brasil era ser lazer de homens brancos, o corpo de uma mulher negra que joga futebol vai de encontro a essa ideia. E, por estar no lado oposto da estrutura patriarcal e racista, quando ela se coloca em campo, a mulher negra movimenta todas as estruturas.

Segundo Sueli Carneiro, enquanto a lógica racista do mercado de trabalho estabelece vantagens sociais para o grupo branco em geral, a ideologia machista dá vantagem aos homens. Estando na intersecção destas duas questões, as mulheres negras são especialmente sensibilizadas[12].

O movimento feminista historicamente lutou contra as discriminações que atingem as mulheres em geral e, por isso, acabou por valorizar determinados traços femininos e generalizando uma “identidade feminina”. Esta identidade, portanto, acaba forçando questões que não se encaixem neste conceito “geral” a serem ignoradas ou adaptadas em prol do grupo, como se este fosse uma entidade homogênea.

É importante lembrar que o avanço do futebol feminino é um avanço para todas. A igualdade de diárias entre as Seleções masculina e feminina, por exemplo, garante uma melhor estrutura para as nossas jogadoras de elite e mostra um interesse da CBF em diminuir as desigualdades. No entanto, esta medida é voltada para a Seleção, que, como Lu Castro aponta há anos, passa por um processo de embranquecimento[13].

Seleção embranquecida: time nos Jogos Olímpicos do Rio. Foto: Ricardo Stuckert.

Quando se compara as formações das seleções femininas, o perfil racial das jogadoras muda com o passar dos anos. Mais especificamente, conforme vai se popularizando a ideia de que as jogadoras devem ser bonitas e femininas para atrair a atenção do público. No jornalismo, isso se reflete com o tema sendo reforçado em matérias sobre a rotina de beleza de jogadoras. Esta beleza, questiona Lu, é apenas branca?

Desde a Copa do Mundo de 2019, as pautas jornalísticas sobre o futebol feminino ficaram em evidência, tanto pela transmissão de jogos quanto pelas ações de marketing estruturadas para apoiar a modalidade. No jornalismo, encontra-se uma cobertura recorde da Copa da França de 2019, o que se reflete em como a modalidade é vista e consumida pelos torcedores e espectadores, e como ela é aproveitada pelo mercado.

Quando se observa, no entanto, a tendência de embranquecimento da Seleção Brasileira feminina – com jogadoras de pele mais clara encontrando cada vez mais destaque –, e um grande destaque ao futebol do Sudeste-Sul em detrimento ao de ouras regiões do país, deve-se questionar se estes fatores não estão interligados.

Os relatórios anuais do Observatório da Discriminação Racial do Futebol trazem uma lista dos casos de racismo e outros preconceitos denunciados pela mídia tradicional e independente envolvendo atletas brasileiros e/ou estrangeiros. Entre 2014 – ano do primeiro relatório – e 2019, eles contabilizam um número muito inferior de casos de racismo contra jogadoras negras do que contra jogadores. Isto não se dá porque as mulheres sofrem menos racismo, mas porque existe um receio de que as portas para o futebol feminino, já tão escassas e de difícil acesso, sejam fechadas para uma jogadora que queira denunciar um caso específico. Hoje em dia, temos atletas que falam sobre o tema, mas normalmente de forma geral – os casos específicos ainda não são denunciados, não chegam nos veículos jornalísticos e, consequentemente, o problema não é visto.

Nos anos 1920, quando as mulheres eram aceitas por “embelezarem” as arquibancadas e as exibições de futebol feminino eram objetos de fantasia dos homens que assistiam aqueles espetáculos, os registros jornalísticos não contavam a história destas mulheres – muitas vezes só lhes chamavam pelo primeiro nome, e suas trajetórias dentro e fora de campo eram apagadas. Isso acontecia com as mulheres negras: em sua dissertação, Bonfim registra a existência de jogadoras negras em alguns times, ressalta que isto não era comum, mas lamenta que não haja mais informações sobre elas.

Após a proibição, os registros de mulheres negras que defenderam a Seleção Brasileira e grandes clubes do país são mais frequentes, mas ainda assim elas não tiveram espaço. Estas mulheres, consideradas as pioneiras do futebol feminino brasileiro, levaram anos até serem recompensadas pelos serviços prestados e até hoje não são conhecidas pelo público em geral. Elas eram consideradas bonitas? Usavam longos rabos-de-cavalo?

Lélia Gonzalez[14] atesta que o eurocentrismo do feminismo brasileiro é mais um fator que trabalha com o ideal do branqueamento e se distancia da realidade das mulheres negras. Mesmo em grupos feministas, as mulheres negras são “desracializadas” e colocadas na categoria popular. Isso acontece com as jogadoras de futebol: enquanto as pautas do futebol feminino são em prol de “todas as mulheres”, outras inerentes à realidade daquelas que são maioria têm menor visibilidade e acabam esquecidas.

Atualmente, há uma maior proximidade do público com as jogadoras devido às redes sociais, à cobertura da mídia independente e ao aumento de divulgação do futebol feminino. No entanto, isto se dá em um momento em que a elite da modalidade, nacionalmente, se aproxima mais do padrão de beleza. Estas vão encontrando cada vez mais espaço em matérias nos jornais, campanhas publicitárias e outras formas de divulgação.

As jogadoras de futebol de clubes de menor expressão nacional não são alcançadas por estas medidas. Meninas negras – em sua maior parte adolescentes – que jogavam no Vitória e já recebiam uma “bolsa” ao invés de um salário ficaram meses sem receberem o auxílio da CBF durante a pandemia. Mulheres negras do Sport que treinavam em campos cheios de buracos e com grama até o joelho e sem receber salários.

Estes casos foram denunciados pela mídia, mas quantos ainda não foram? Quantas mulheres negras, indígenas, ainda trabalham para clubes sem receber um salário adequado? Termos finais de um Campeonato Brasileiro jogadas nas principais arenas do país é um passo gigantesco, mas quantas jogadoras essa medida atinge? Onde elas jogam, quanto elas ganham, qual a cor da pele delas?

Quando se pensa no futebol feminino brasileiro, as questões trazidas pela mídia são sempre em prol da modalidade como um todo. No entanto, o foco – pela localização destes veículos, pelo perfil destes jornalistas e pela organização diferenciada do esporte no estado mais rico do país – acaba sendo em lutas centradas em São Paulo e, cada vez mais, por mulheres brancas ou de pele mais clara. Em uma modalidade cujas tantas glórias foram conquistadas por mulheres negras, enquanto as pautas raciais não forem parte intrínseca desta luta, as conquistas seguirão sendo excludentes.


Notas

[1] SILVA, Natália. A negra no futebol brasileiro: Entrevista ao vivo com Bruna Amarante. 2020. (45:42). Acesso em: 7 dez. 2020.

[2] CARVALHO, Marcelo Medeiros de. Por outro futebol: Esporte e Racismo pelas mulheres com Natália Silva e Ana Carolina Toledo. 2020. (1:53:52). Acesso em: 7 dez. 2020.

[3] SILVA, Roberta Pereira da; MENDES, Bárbara Gonçalves; DANTAS, Marina de Mattos. Racismo: a quem interessa pensar que foi diferente no futebol? Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 52, 2020.

[4] PISANI, Mariane da Silva. Futebol feminino: espaço de empoderamento para mulheres das periferias de São Paulo. Ponto Urbe [Online], 14 | 2014, posto online no dia 30 julho 2014, consultado o 30 abril 2019.

[5] BONFIM, Aira Fernandes. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941). 2019. Dissertação (Mestrado em História, Política e Bens Culturais) – Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2019.

[6] MORAES, Enny Vieira. Fazendo gênero e jogando bola: futebol feminino na Bahia anos 80-90. Salvador: EDUFBA, 2014.

[7] ARRUDA, Eduardo. FPF institui jogadora-objeto no Paulista. Folha de S. Paulo: Esporte. 2001. Acesso em: 7 dez. 2020.

[8] HISTÓRIA PRETA: O negro no futebol: Onde estão as pretas? Locução: Thiago André. B9 Podcasts, 3 ago. 2020. Podcast. Acesso em: 7 dez. 2020.

[9] HISTÓRIA PRETA: O negro no futebol: Clarice. Locução: Thiago André. B9 Podcasts, 14 set. 2020. Podcast. Acesso em: 7 dez. 2020.

[10] BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. Recurso digital.

[11] KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2020. 249 p.

[12] CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Pólen Produção Editorial LTDA, 2019. 296 p.

[13] CASTRO, Luciane de. Seleção feminina – Dos talentos negros ao embranquecimento. Ludopédio, São Paulo, v. 93, n. 12, 2017.

[14] GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. Recurso digital.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Júlia Belas

Jornalista pela Universidade Federal da Bahia, mestre em Jornalismo Esportivo pela St. Mary's University, Chevening alumna 2015-16.

Como citar

BELAS, Júlia. Quem conta a história das negras no futebol?. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 39, 2020.
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