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Gripe Espanhola e Futebol no Brasil (Parte 5): Porto Alegre

Equipe do S.C. Cruzeiro, campeã da cidade de Porto Alegre. Foto: Reprodução/Vida Sportiva (RJ), 02 nov. 1918, p. 10

Há várias teorias sobre a origem da pandemia de influenza que assolou o mundo em 1918. Os estudiosos do fato afirmam que a propagação e a letalidade foram influenciadas pela queda dos padrões sanitários. E também pelos efeitos da escassez alimentar decorrentes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Em setembro de 1918, os primeiros casos da chamada “gripe espanhola” foram registrados no Rio de Janeiro. No início do mês de outubro a pandemia atingiu São Paulo, com elevada taxa de virulência, alastrando-se em seguida por todo o país. Calcula-se em torno de 300 mil mortes desencadeadas pela gripe espanhola em todo o Brasil. Embora, assim como acompanhamos através das diversas mídias que relatam sobre a atual pandemia do Covid-19, muitos dos casos não chegaram ao conhecimento das autoridades sanitárias, ou seja, foram subnotificados. O mesmo pode-se dizer em relação ao número de enfermos (ABRÃO, 1998).

No Rio Grande do Sul, em 10 de outubro, a imprensa se referia à chegada, no porto de Rio Grande, de trinta e oito tripulantes do vapor Itajubá, atacados pela  influenza espanhola. Extremamente contagiosa, a doença alastrou-se pelo Estado nos últimos três meses de 1918 (ABRÃO, 1998, p. 62-63).

A Influenza Espanhola noticiada nas páginas de A Federação

Foto: Reprodução/A Federação (RS), 16 out. 1918 p.1

O jornal A Federação (1884-1937), principal veículo de divulgação dos ideais políticos do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) não demorou a divulgar notícias sobre a avassaladora pandemia que se espalhava pelos quatro cantos do mundo. Na segunda quinzena de outubro, diversas matérias sobre a gripe espanhola eram registradas ao longo das edições.

A negação de aspectos que envolviam a doença e a oferta de “soluções mágicas” em forma de xaropes, algo tão semelhante ao que vivemos na atualidade em relação ao novo Coronavírus, também acompanhavam as edições de A Federação que tratavam sobre a gripe espanhola. Assim, semelhantemente a algumas posturas atuais, os negacionistas afirmavam que: “[…] a influenza hespanhola, que se devera chamar alemão por seus covardes, só faz mal a crianças e gente velha…” (A Federação (RS), 23 out. 1918, p. 9).

Turfe

Foto: Reprodução/A Federação (RS), 19 out. 1918, p. 7.

Mesmo diante das notícias alarmantes, incluindo aquelas vindas diretamente da capital do país naquele momento, o Rio de Janeiro, as atividades esportivas na capital dos gaúchos, especialmente o turfe, pareciam ainda estar em pleno funcionamento. No mesmo dia (19 de outubro) em que A Federação noticiava que na bilheteria do Derby Club do Rio de Janeiro faltaram 44 empregados “[…] que se achavam atacados pela influenza”, ainda estavam ocorrendo provas da modalidade em Porto Alegre. Assim noticiava a edição de 19 de outubro: “Amanhã no prado do Moinhos de Vento, será realizado o grande páreo Dr. Assis Brasil”.

O mesmo acontecia com as provas de turfe no Derby Club da cidade de Pelotas, que ainda estavam sendo realizadas na primeira metade de outubro (“Páreo Coronel Antero Cunha” realizado em Pelotas. A Federação, RS, 15 out. 1918, edição 00243, p. 1). 

O turfe encabeçava a liderança entre os assuntos esportivos de A Federação. Observa-se que, ao final de outubro, o jornal parece sinalizar para a paralisação das provas. Na edição de 29 de outubro, uma coluna sobre equitação discutia acerca dos principais métodos utilizados na modalidade. A possível suspensão das provas fazia com que o espaço no jornal destinado aos esportes fosse preenchido com textos sobre o histórico e métodos utilizados no turfe. Os textos sobre os métodos de equitação seguem pelo mês de novembro.

Em dezembro, um artigo na coluna Sports (19 dez. 1918) abordava acerca das raças de cavalos com ênfase na seleção de cavalos crioulos. Dois dias depois, na edição de 21 de dezembro foi anunciado o programa da corrida organizada pela Sociedade Protetora do Turfe, que ocorreria no dia seguinte, indício de que a modalidade pode ter retomado as atividades antes mesmo do futebol.

Futebol

Embora contendo menos notícias sobre a modalidade nas edições pesquisadas, observou-se que a bola continuou rolando nos campos de Porto Alegre na primeira quinzena de outubro de 1918. Assim era noticiado pela coluna Sports:

Foto: Reprodução/A Federação (RS), 15 out. 1918, p. 1.

Sobre o futebol no Rio Grande do Sul durante o período, o fonograma publicado na edição de 25 de outubro de A Federação já alertava sobre a indecisão acerca da realização do campeonato estadual por parte da liga da cidade de Rio Grande:

Foto: Reprodução/A Federação (RS), 25 out. 1918, p. 5.

Essa movimentação em direção ao cancelamento de campeonatos seguia em grande discussão como é o caso por exemplo do Campeonato Sul Americano de Futebol, que seria disputado no Rio de Janeiro. Sobre esse campeonato, vale destacar que a edição do jornal Vida Sportiva (RJ) de 16 de novembro trazia um interessante diálogo fictício entre o autor da coluna “Opiniões Pessimistas”, Julio Roma, e a personagem “senhorita F.C.”. Neste suposto diálogo era exposta a rixa entre os brasileiros e os vizinhos platinos sobre a questão da não ocorrência do campeonato. O texto dizia:

“Os orientais, muito naturalmente querem exercer o monopólio do campeonato e acham mesmo que somente em Montevideo se pode realizar essas grandes pugnas internacionais. Alegam eles que a nossa metrópole está sendo invadida por fortes epidemias, as quais podem vitimar os representantes das identidades esportivas do Prata. Que escandalosa pretensão!”

Em 18 de maio de 1918, foi fundada a Federação Rio-Grandense de Desportos (atual Federação Gaúcha de Futebol) que naquele mesmo ano tentou realizar o primeiro campeonato estadual. Os clubes Brasil de Pelotas (Pelotas), 14 de Julho (Santana do Livramento) e Cruzeiro (Porto Alegre) habilitaram-se à disputa como campeões regionais. Sobre o campeão porto-alegrense, o Vida Sportiva noticiou em sua edição de 02 de novembro a vitória dos cruzeiristas sobre a equipe do clube que viria a ser um dos expoentes do futebol gaúcho, o Grêmio F.B.P.A. A partida que consagrou o Cruzeiro campeão de Porto Alegre terminou com o placar de 4 a 2 abaixo de “[…] ardentíssimo sol”.

No entanto, a equipe do S.C. Cruzeiro acabou não disputando o estadual daquele ano, pois este não aconteceu. Em 2018, no ano do centenário da Federação, a polêmica sobre quem seria o campeão do estadual de 1918, que não ocorreu, foi reacendida entre os clubes que disputariam a final. Cabe lembrar que o campeonato estadual desde a sua primeira edição, 1919, também deixou de ser disputado em dois momentos. Em 1923, devido à guerra civil que envolveu de um lado chimangos (partidários de Borges de Medeiros, presidente do Estado) e de outro maragatos (partidários de Assis Brasil). E posteriormente, em 1924, em função dos movimentos tenentistas pelo país, onde do Rio Grande do Sul organizou-se a Coluna Prestes.

Mas, voltando às pesquisas realizadas no A Federação, as menções ao futebol na coluna “Sports” não estavam entre as principais. Pode-se dizer que supostamente o futebol permaneceu paralisado ao menos durante o período pesquisado. Houve o cancelamento da primeira edição do campeonato estadual além de também não haver notícias sobre partidas entre a segunda quinzena de outubro até aproximadamente início do mês de março de 1919.

Foto: Reprodução/A Federação (RS), 7 dez. 1918, p. 7.
Foto: Reprodução/A Federação (RS), 8 mar. 1919, p. 7.

Em novembro a notícia encontrada sobre o futebol na coluna Sports dizia respeito à recuperação da saúde do atleta do Sport Club Cruzeiro, Henrique Maya Failace (A Federação, RS, 26 nov. 1918, p. 1). Já em 07 de dezembro, as notícias sobre o futebol versavam sobre o aniversário do atleta do Grêmio Porto-Alegrense, João Carlos Jacques Mallet. E também sobre a convocação feita pelo capitão do América F.C. para que os atletas comparecessem a uma reunião que discutiria sobre a organização das equipes.

A próxima notícia de dezembro, dia 28, anunciava a organização de uma reunião dançante por torcedoras “alvi-azuis” na sede social do Grêmio Porto-Alegrense (A Federação, RS, 28 dez. 1918, p. 2). No final de dezembro, dia 30, havia apenas comunicado sobre a nova diretoria do Grêmio Porto-Alegrense e pequena notícia sobre a reunião dançante anunciada anteriormente (A Federação, RS, 30 dez. 1918, p. 6).

No dia 19 de março de 1919, há uma notícia mais concreta acerca da realização de um match realizado no Rio de Janeiro entre um quadro de footballers gaúchos versus um quadro do C.R. Flamengo.

Através das pesquisas em A Federação não foi possível precisar o período exato de paralisação e retorno das equipes de futebol aos campos porto-alegrenses. Nem a forma com que torcedores e dirigentes reagiram diante da paralisação das atividades esportivas.

Censura e esportes: uma hipótese

Onde estariam as possíveis polêmicas envolvendo a paralisação das atividades esportivas em Porto Alegre durante a pandemia de 1918? Será que elas existiram? Tratando-se do periódico pesquisado, a hipótese que se levanta é que por ser A Federação, um jornal oficialista. Ou seja, era porta-voz oficial do partido dominante no Rio Grande do Sul naquele período. As opiniões e polêmicas envolvendo a pandemia e sobre a possível paralisação dos esportes foram evitadas durante as edições referentes ao período de maior incidência do contágio da influenza espanhola. Este caráter oficialista pode ser exemplificado através da edição de 20 de dezembro. Em sua primeira página, o jornal expôs a defesa da censura aplicada ao seu principal concorrente, o Correio do Povo, afirmando que esta “[…] obedeceu invariavelmente ao seu objetivo humano de assegurar a necessária tranquilidade pública”. Ainda segundo A Federação:

Desde que apareceram os primeiros casos de gripe nesta cidade (Porto Alegre), o Correio do Povo, cujas atitudes, propósitos e intuitos são bem conhecidos, começou a dar notícias impressionantes e bordar comentários tendenciosos não raro em linguagem lamuriante e piegas, com o fim tangível e irrecusável de persuadir o público de que as providências tomadas pelo Governo do Estado não correspondiam às graves necessidades do momento.

Esta tentativa de calar as vozes dissonantes que insistiam em contrariar o posicionamento da imprensa oficialista possivelmente se aplicava aos diversos temas, incluindo aí os esportes.

Resta, no entanto, saber se houve pressões dos representantes do turfe porto-alegrense (Sociedade Protetora do Turfe) e esportistas, a fim de que a volta dos páreos ocorresse de forma tão rápida quanto o galopar dos puros-sangues pelos prados rio-grandenses. Por outro lado, também interessa saber como isso ocorreu em relação ao futebol.

Logicamente, este texto não pretendeu esgotar o assunto. Para além de apresentar alguns indícios sobre as atividades esportivas porto-alegrenses durante a pandemia de 1918, cabe ao final propor ao leitor algumas reflexões. Como o cenário esportivo brasileiro tem encarado a pandemia do novo Coronavírus acrescida da enorme crise política pela qual estamos passando? Como a mídia, os clubes, as federações, os atletas, etc. têm se posicionado? Quais são os motivos que realmente movimentam os defensores do rápido retorno das atividades esportivas, especialmente o futebol? Prioridade parece ser a palavra-chave implicitamente contida nestas questões. Espera-se que neste momento crítico esta seja, sobretudo, a vida.

Referência

ABRÃO, Janete. Banalização da morte na cidade calada: a hespanhola em Porto Alegre, 1918. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Tassiane Freitas

Colorada. Historiadora. Desenvolvo pesquisa voltada aos clubes de futebol operário formados por mineiros do carvão do Rio Grande do Sul (PPGH - UFSM). Membro do Stadium (Grupo de Estudos de História do Esporte e das Práticas Lúdicas - UFSM). Também tenho interesse em pesquisas que envolvem o futebol de mulheres e as lutas antirracistas no mundo dos esportes.

Como citar

FREITAS, Tassiane. Gripe Espanhola e Futebol no Brasil (Parte 5): Porto Alegre. Ludopédio, São Paulo, v. 132, n. 34, 2020.
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