Futebol e narcotráfico III: as influências de Gonzalo Rodríguez Gacha, “El Mexicano”, no futebol do Millonarios
Entre 2016 e 2017, publiquei dois textos neste espaço tratando sobre as relações possíveis existentes entre o futebol e o narcotráfico na Colômbia dos anos 1980. Em uma primeira iniciativa, problematizei algumas questões relacionadas à participação (ou não) de Pablo Escobar no futebol em Medellín. Já em uma segunda oportunidade, avancei para destacar algumas das questões que se relacionaram à inserção do cartel de Cali, liderado pelos irmãos Rodríguez Orejuela, no futebol da cidade.
Ambos os textos são iniciativas introdutórias de um projeto maior que aos poucos estou desenvolvendo, buscando assim problematizar historicamente e com maior profundidade as relações existentes entre o futebol e o narcotráfico na Colômbia, notadamente nos anos 1980.
Por ocasião da realização de minha tese de doutorado, defendida em junho deste ano em meio à pandemia e onde desenvolvi uma pesquisa com outra temática relacionada à História do Esporte (um estudo comparativo dos Jogos do Centenário de 1922 no Rio de Janeiro e dos Jogos Bolivarianos de 1938 em Bogotá), as investigações sobre o objeto de estudo proposto aqui hoje tinham sido temporariamente interrompidas. Porém, tal projeto está aos poucos sendo retomado. Depois de passar por Medellín e Cali, abordarei neste texto um pouco das possíveis relações existentes entre o futebol e o narcotráfico na cidade de Bogotá, capital da Colômbia e sede de dois dos principais clubes de futebol do país, o Millonarios e o Independiente Santa Fe.
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De forma mais específica, serão problematizadas as influências de José Gonzálo Rodríguez Gacha, conhecido como “El Mexicano”, no âmbito do Millonarios. Como materialização do auge dessa influência, podemos destacar os títulos colombianos vencidos pela equipe do Millonarios em 1987 e 1988, destacado por boa parte da imprensa do país como resultado do grande investimento financeiro clandestino que o clube recebeu por parte do narcotraficante.
Para chegarmos a esse encontro entre o narcotráfico e o clube, é válido destacar um pouco a biografia de El Mexicano, tal como sua inserção no mundo da venda de drogas na Colômbia entre as décadas de 1970 e 80.
Gonzalo Rodríguez Gacha nasceu no departamento colombiano de Cundinamarca, em 1947. Oriundo de uma família humilde de camponeses, desde cedo se envolveu em pequenos casos de crimes e furtos. Ficou caracterizado pela imprensa do país por ser considerado “violento e sanguinário”, tendo sido o provável autor e/ou mandante de vários homicídios. Por ser um apreciador assumido da cultura e vida mexicanas, ficou conhecido como El Mexicano.
Gacha iniciou seus negócios no ramo de vendas de esmeraldas. Desde seus primórdios, já se envolveu em transações ilegais, camufladas por distintas formas de lavagem de dinheiro. Logo que seus negócios foram se ampliando, se inseriu também no âmbito do narcotráfico.
Gacha iniciou seus negócios no ramo de vendas de esmeraldas. Desde seus primórdios, já se envolveu em transações ilegais, camufladas por distintas formas de lavagem de dinheiro. Logo que seus negócios foram se ampliando, se inseriu também no âmbito do narcotráfico.
Foi um dos braços principais do cartel de Medellín, se estabelecendo como um dos maiores aliados de Pablo Escobar em Bogotá. Inclusive, no âmbito da defesa armamentista do cartel, exerceu papel de grande liderança e destaque no confronto contra inimigos do mercado do narcotráfico, como nos conflitos armados contra o cartel de Cali dos irmãos Rodríguez Orejuela, nos anos 1980.
No fim de sua vida, acabou se vendo em uma encruzilhada, tendo adentrado em quatro frentes de conflito no país: contra o Estado, o cartel de Cali, as FARC e algumas lideranças do mercado de esmeraldas. Acabou morto em 1989, em uma operação do Estado colombiano de enfrentamento ao cartel de Medellín.
Durante sua trajetória, acabou se utilizando de vários espaços para a realização de investimentos e/ou lavagem de dinheiro. Um deles foi o futebol. Gacha acabou se tornando um dos sócios majoritários de um dos maiores clubes do país, o Millonarios de Bogotá. Chegou ao clube em 1982, junto de Edmer Tamayo Marín, que chegou a ser presidente do clube e era muito próximo do famoso narcotraficante. Alberto Galviz Ramírez destaca que
Tamoyo […] morreu em 1986 depois que se vinculará ‘como proprietário de uma carga de 2.000 quilos de cocaína confiscados em setembro de 1982 e outra de 65 quilos confiscada em Barranquilla’. Por sua parte, Rodríguez Gacha, El Mexicano, importante patrão do narcotráfico e líder de “Los Extraditables” (em referência ao grupo de narcotraficantes colombianos que, juntos de Pablo Escobar, lutou contra a extradição para os Estados Unidos nos anos 1980) assumiu o comando do Millonarios em meados dos anos 80 e sua influência foi determinante para o destino do quadro azul. Destacadas figuras chegaram à formação da capital graças à inegável fonte de dinheiro que respaldava El Mexicano, o que permitiu que o Millonarios se coroasse campeão em 1987 e 1988. (GALVIS RAMÍREZ, 2008, p. 97-98, tradução nossa).
Entretanto, no decorrer dos anos 1990 e 2000, a temática do narcotráfico e o quanto essas figuras influenciaram em diversos setores sociais, dentre esses os clubes de futebol, passou a ser cada vez mais problematizada e negada por boa parte da sociedade colombiana. No caso do Millonarios, esse debate se tornou tão grande que, inclusive, surgiram movimentos que buscaram anular os títulos nacionais conquistados pela equipe em 1987 e 1988.
É válido destacar que tais conquistas foram muito importantes naquele contexto para os torcedores, já que o clube passava por um jejum de nove anos sem conquistas (o último título nacional havia ocorrido em 1978), tal como permaneceu mais vinte e quatro anos sem títulos do Campeonato Colombiano depois do bicampeonato nos anos 1980, encerrando o jejum somente em 2012. Ou seja, em um intervalo de trinta e quatro anos (1978 a 2012), as únicas conquistas do Millonarios, então maior campeão nacional, foram os títulos conquistados no período de influência de Gacha e companhia.
Felipe Gaitán, então presidente do Millonarios em 2012, admitiu na época que poderia “devolver” os títulos de 1987 e 1988, se assim determinasse a justiça em caso de confirmação do envolvimento financeiro do narcotráfico no âmbito do clube durante esse período. A decisão acabou não se materializando, mas dividiu parte da torcida. Fato é que, depois dessa iniciativa, mesmo no cenário recente da atual década e com vários debates acerca da importância de se combater e negar os horrores cometidos outrora pelo narcotráfico, bandeiras estampando o rosto de Gacha foram levantadas em algumas ocasiões por parte dos torcedores do Millonarios nos estádios, como podemos ver abaixo.
Em 2012, residi por alguns meses em Medellín, durante um período de graduação sanduíche que realizei no âmbito da Universidad de Antioquia. Na ocasião, tive como principal objetivo a investigação de fontes para o trabalho que, posteriormente, resultaria em meu primeiro livro lançado em 2014, intitulado “El Dorado: efeitos do profissionalismo no futebol colombiano (1948-1951)”. A grande coincidência ficou por parte do título do Millonarios no torneio finalización do Campeonato Colombiano de 2012, considerando que era também el Ballet Azul a principal equipe do período em que pesquisei nos anos El Dorado do futebol colombiano, quando o clube contava em seu elenco com craques do quilate dos argentinos Alfredo Di Stéfano, Adolfo Pedernera e Néstor Rossi.
Pude vivenciar de perto a conquista de um título colombiano da equipe depois de vinte e quatro anos. E além da ansiedade pela conquista, notória em grande parte de seus torcedores no decorrer do percurso, uma questão me chamou a atenção: a possibilidade de anulação das taças de 1987 e 1988 dividiu muito os próprios torcedores do Millonarios. Uma boa parte da hinchada azul se colocou como favorável a essa anulação, para assim se desvincularem dessa “mancha” na história do clube. Por outro lado, também tiveram muitos torcedores que se posicionaram como contrários à anulação, pois entendiam que o Millonarios foi, assim como outros clubes colombianos do período, fruto de uma influência muito mais ampla do narcotráfico no âmbito social, político e econômico daquele contexto, presente em toda a Colômbia.
É válido destacar, como demonstrado nos textos anteriores aqui já citados (Parte I e Parte II), que de fato a influência do narcotráfico foi muito além da equipe do Millonarios e, de forma mais geral, do futebol colombiano. Esteve presente na maior parte dos setores da sociedade colombiana entre os anos 1970 e 1990, com foco maior na década de 1980.
Porém, clube gigante que é e que já possuía uma grande história anterior a esse período, como nos tempos do El Dorado do futebol colombiano (tema que já abordei em vários outros trabalhos, tendo resultado em dois livros: o já citado “El Dorado” e “A invenção do profissionalismo no futebol”), o Millonarios sobreviveu ao período de influência do narcotráfico e foi muito além do título de 2012. Desde então, a equipe já conquistou o maior título nacional do país em outra oportunidade, no ano de 2017, além de ter ganho a Copa Colombia em 2011, a Superliga da Colombia em 2018 e títulos internacionais, como a Copa Merconorte, em 2001. O narcotráfico deixou marcas, mas o futebol colombiano seguiu e continuará seguindo em frente.
Referências bibliográficas
GOMES, Eduardo de Souza. Futebol e narcotráfico: uma releitura do caso de Pablo Escobar na Colômbia. Blog História(s) do Sport. 2016. Acesso em: 17 ago. 2020.
______. Futebol e narcotráfico II: uma breve análise da influência do cartel de Cali no futebol do América. Blog História(s) do Sport. 2017. Acesso: 17 ago. 2020.
GONZALO RODRÍGUEZ GACHA, ‘El Mexicano’: esse fantasma que pasó por Millonarios. Gol Carocol TV. 20 de maio de 2013. Acesso em: 14 ago. 2020.
PEREIRA, Ivan Alves. História do futebol colombiano: a Era dos Narcos. Doentes por Futebol. 2015. Acesso em: 14 ago. 2020.
RAMÍREZ, Alberto Galvis. 100 años de fútbol en Colombia. Bogotá: Planeta, 2008.
RUIZ BONILLA, Guillermo. La gran historia del fútbol profesional colombiano: 60 años de logros, hazañas y grandes hombres. Bogotá: Dayscript, 2008.