A primeira Copa do Mundo de que tive notícia foi a de 1974, na Alemanha Ocidental, embora, muito pequeno, pouco a tenha de fato acompanhado. De alguma coisa me lembro, mas seguramente há também projeção retrospectiva nas imagens que guardo na memória. Anos depois, já interessado em futebol, assisti a lances de jogos, vi fotos e li textos sobre o evento, matéria que vai se mesclando com as próprias recordações.

De qualquer forma, lembro-me do álbum de figurinhas em que a equipe do Zaire parecia a do Brasil, os jogadores dos dois países portavam camisetas amarelas; da derrota do escrete frente à seleção dos Países Baixos; do novo insucesso, desta vez frente aos poloneses em partida pelo terceiro lugar. Rivellino era o nosso 10, já que Pelé se despedira, Leão era o arqueiro, Zé Maria, do Corinthians, assumira a posição que fora de Carlos Alberto Torres, Luís Pereira, Dirceu, Paulo Cézar Lima, Wilson Piazza, Marinho Chagas, veteranos do Tri mesclados com novas caras compunham o time nacional. Havia ainda outro Marinho, zagueiro, o Peres, que minha avó dizia ter deixado a Espanha, onde atuava pelo Barcelona, porque o haviam convocado para o serviço militar obrigatório (ele tinha dupla nacionalidade) nos estertores do franquismo. Marcada na memória ficou a imagem do capitão do time campeão, Franz Beckenbauer, levantando a taça.

Dois anos depois Beckenbauer liderou o Bayern München no título da Liga dos Campeões da Europa, para logo vencer o Cruzeiro, campeão da Libertadores, na Copa Intercontinental, em dois jogos. Na Baviera, o time que era a base da seleção alemã, venceu debaixo de neve (a bola era alaranjada, para que pudesse ser identificada); no Mineirão o empate sem gols sob chuva foi suficiente para uma nova taça. Foram muitas na carreira dele, tanto como jogador quanto como treinador e dirigente, em especial, além de 1974, a Copa de 1990, na Itália, quando os alemães chegaram ao seu tricampeonato.

Jogadores da seleção alemã posam para foto após conquistarem o título da Copa do Mundo de 1974, disputada na Alemanha. Franz Beckenbauer, capitão, segura a taça. Foto: Wikipedia.

Antes de ser campeão, o jogador do Bayern disputou duas outras Copas, ambas com atuações épicas. Na da Inglaterra, em 1966, o jovem de 20 anos anulou Bobby Charlton na final contra os anfitriões. A vitória dos britânicos foi difícil, com gol contestado, daqueles em que a bola se choca com o travessão e cai com força muito próxima da linha da meta final. Entrou ou não? O árbitro entendeu que sim, não dá para ter certeza. Quatro anos depois, no México, Beckenbauer atuou em parte da semifinal contra a Itália, decidida na prorrogação para os Azzurri, com a clavícula fraturada. São partidas que vale a pena assistir, de futebol tático, técnico e habilidoso, mais lento que o de hoje, mas nem por isso de menos beleza. Espetáculos de linda plasticidade.

Muito técnico, com visão de jogo privilegiada e condicionamento físico acima da média, Beckenbauer atuou como defensor, volante ou meia, conforme o momento da carreira. Foi, no entanto, como líbero, jogando de uma intermediária à outra, que se consagrou. Não houve jogador melhor que ele nessa função que já não existe: atleta que atua por trás da zaga, na sobra, para fazer a rápida e precisa transição para o ataque. Dali arma o jogo, faz lançamentos, chega de surpresa à área adversária para concluir. Por causa do exemplo do Kaiser (Imperador, como até hoje é chamado), a Alemanha sempre teve ótimos futebolistas atuando na posição, como, entre tantos, Matthias Sammer e Lothar Matthäus.

Franz Beckenbauer, em foto tirada no ano de 2006. Foto: Wikipedia.

Na segunda metade dos anos 1970, depois de ser campeão de tudo o que era possível pelo Bayern München e pela seleção da Alemanha Federal, Franz travessou o Atlântico para atuar no New York Cosmos, compondo o time de astros, muitos veteranos, que contava, entre outros, com Carlos Alberto Torres e, o melhor dos melhores, Pelé. Em uma entrevista há uns dez anos, no programa Bola da Vez, da ESPN, com o capitão do tri na bancada, o alemão disse que logo entendeu do que se tratava atuar nos Estados Unidos da América. No dia seguinte à chegada, deslocou-se do hotel ao campo de treinamentos para uma sessão que começaria às 10 horas. Chegando pontualmente, não encontrou alma viva, seu amigo Carlos (que riu da resposta) só às 11 se faria presente. Pelé não deu as caras.

Beckenbauer ainda teve tempo de jogar duas temporadas pelo Hamburgo, chegando a mais um título da Bundesliga, e voltar para o Cosmos para viver o epílogo daquele projeto de popularização do soccer no país do football. Logo depois, foi o técnico vice-campeão do Mundial de 1986, perdendo frente à Argentina de Maradona. Quatro anos depois, novamente em final contra os platenses, o título na Itália consagrou-o como técnico.

Depois de ainda atuar como treinador do Bayern e de poucos outros clubes, Beckenbauer foi dirigente do clube de Munique, da Federação Alemã e do Comitê Organizador da Copa de 2006, realizada em seu país. O enorme êxito em tantas funções não impediu o triste ocaso do Kaiser. Há poucos dias um processo contra ele na Corte Suíça foi encerrado. A acusação dizia de um esquema de propina em favor de votos necessários para que a Alemanha alcançasse a condição de sede do Mundial. Com sérios problemas de saúde, o grande futebolista teve audiências seguidamente proteladas e o caso prescreveu.

Não é um fim de carreira dos melhores, com certeza. Mas, não é seu epílogo que a sintetiza. Uma longa vida ainda, e o cultivo das memórias, é o que desejo para Franz Beckenbauer.

Sul da Ilha de Santa Catarina, maio de 2020.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Franz Beckenbauer: glória e ocaso do Kaiser. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 35, 2020.
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