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E o futebol encarou a ditadura

Roberto Jardim 12 de fevereiro de 2019

Há 40 anos o Brasil vivia uma situação muito similar à atual em termos políticos. Só que em direção oposta. Enquanto hoje temos um ex-militar na presidência e tomamos um caminho que leva à perseguição das ideias contrárias às de quem está no poder, em 1979, tínhamos um general no Planalto e a oposição à ditadura militar começava a aumentar, com a luta pela democracia e pela liberdade passando a ganhar espaço.

Foi assim que, em fevereiro daquele ano, o futebol deu mais um exemplo de que não é apenas um jogo de bola. Durante um clássico entre Corinthians e Santos, disputado no Morumbi na tarde de um domingo típico do verão paulistano, um grupo de pessoas, com apoio da torcida Gaviões da Fiel, faria um protesto contra a ditadura. Isso alguns anos antes da famosa Democracia Corintiana.

Confirmando sua tradição de envolvimento na luta política e social, a organizada do Timão ajudou os corintianos Antônio Carlos Fon e Chico Malfitani e o santista Carlos MacDowell, entre outros, a desfraldarem uma faixa pedindo “anistia ampla, geral e irrestrita”. Em muitos anos, era a primeira manifestação pública em defesa dos presos e perseguidos políticos.

Quatro décadas depois, lembramos os bastidores dessa façanha que entrou para a História, a partir das memórias de três dos envolvidos.

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Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução.

Era para ter sido um domingo de futebol como outro qualquer aquele 11 de fevereiro de 1979. Como é comum no verão de São Paulo, a tarde foi muito quente, e uma forte chuva caiu para amenizar o calor. O dilúvio que desabou dos céus não impediu, porém, que, às 17h, Corinthians e Santos entrassem em campo para disputar uma partida válida pela sétima rodada da segunda fase do Paulistão de 1978 — que se estenderia até junho, com o Peixe sagrando-se campeão.

Como dizíamos, seria uma tarde normal de clássico no Morumbi não fosse um zum-zum-zum na imprensa esportiva já há alguns dias e, até, em parte das arquibancadas. Afinal, jornalistas que cobriam o campeonato vinham sendo avisados de que uma surpresa vinha sendo preparada para ocorrer pouco antes do confronto. O que nem todos sabiam era que, em meio à arquibancada, a torcida do Timão traria uma novidade: uma manifestação política dentro do estádio.

Eu era amigo de dois dos envolvidos e fiquei sabendo! Eu tinha até os detalhes! — lembra o hoje colunista da Folha de S. Paulo Juca Kfouri, à época editor da revista Placar — Os idealizadores do ato, meus colegas de Abril Antônio Carlos Fon e Chico Malfitani, haviam avisado que abririam uma faixa contra a ditadura.

O protesto ocorreu como idealizado por Fon e Malfitani e planejado nas reuniões do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), do qual Fon e o engenheiro Carlos MacDowell faziam parte. Quando a equipe corintiana entrou em campo, capitaneado pelos dois jornalistas e pelo engenheiro, um grupo de torcedores desfraldou a faixa com um recado aos militares no poder em Brasília desde 1964: um pedido de anistia ampla, geral e irrestrita.

Com o estádio abarrotado por quase 109 mil pagantes, foi difícil para a Polícia Militar impedir a ação. Até porque integrantes da torcida organizada Gaviões da Fiel barraram qualquer tentativa dos agentes de reprimir a manifestação e capturar os envolvidos.

Como havia sido combinado, antes mesmo de Sócrates abrir o placar para o Timão, aos 26 minutos, enquanto o Corinthians dominava a partida e chovia a cântaros, a faixa era recolhida e escondida. A história do protesto, porém, não se resume ao ato em si. Ela começou semanas antes, em reuniões separadas, como era comum entre os opositores ao regime militar. Fon, 73 anos, Malfitani e MacDowell, ambos com 68 anos, lembram como foram aqueles dias.

O começo da distensão

Antes, porém, é bom lembrar como era o Brasil em 1979. O país entrava nos últimos anos da ditadura iniciada em 1964 e que terminaria oficialmente seis anos depois, com a eleição de Tancredo Neves para a presidência da República — mas, aí, já é outra história. Mesmo assim, a repressão já iniciava uma distensão. Ainda havia, contudo, o medo ou a imposição do medo.

O ditador de plantão era o general João Figueiredo, uma espécie de Jair Bolsonaro dos anos 70. Se a inteligência dos dois se equipara, em truculência, o verdugo que preferia cheiro de cavalo ao de gente dava de lavada. Ao ter ficado com o encargo de defender a abertura em direção à democracia, iniciada no governo anterior, de Ernesto Geisel, prometia: “quem for contra (a abertura), eu prendo e arrebento”, dando o tom de como resolvia o que considerava ser problema.

Assim, o regime iniciado uma década e meia antes estava a caminho do seu fim. E por motivos diversos. O principal, porém, era a crise global no capitalismo devido à redução da venda de petróleo por parte dos países árabes em represália ao apoio dos EUA a Israel. Isso acabou levando à eleição do democrata Jimmy Carter para a presidência americana, em 1977. Ele chegou ao poder com uma plataforma de defesa da democracia e dos direitos humanos — bandeiras bem diferentes de o que seu país vinha praticando ao longo dos anos em nome da Guerra Fria.

Nesse cenário, o retorno da democracia e da liberdade no Brasil parecia um caminho sem volta. Ele tinha, porém, uma pedra na travessia: o que fazer com as pessoas presas e torturadas, tanto as mortas (muitas desaparecidas até hoje) quanto as sobreviventes, e aquelas que tiveram seus direitos cassados e acabaram exiladas? Assim, parentes e as próprias vítimas do regime criaram o CBA.

E surge uma ideia

E foi de um integrante do Comitê que nasceu a ideia de uma manifestação popular de apoio à abertura e à anistia. Participante da organização desde seu começo — preso, torturado, testemunha de um assassinato sob tortura e com um irmão ainda detido por crimes políticos –, Fon se envolveu pessoalmente na campanha que se iniciava. Em uma conversa com o amigo e colega Malfitani, teve um lampejo.

Nessa época, eu era repórter especial da revista Veja, onde tinha como colega o Chico. Éramos amigos e corintianos. Um dia, estávamos conversando, e eu me queixava: “porra, Chico! O que a gente tem é de tirar a campanha pela anistia dos partidos, das universidades e da classe média e levar para o meio do povo, para o meio da torcida do Corinthians!” — recorda.

Fon se lembra de que Malfitani ficou olhando para ele, com o olhar parado, pensativo, por alguns segundos, antes de responder.

Então vamos levar! — respondeu o colega, repórter na mesma publicação.

Era a resposta que Fon esperava. Afinal, Malfitani era um dos fundadores da Gaviões da Fiel, torcida organizada do Timão, e um porto seguro onde buscar apoio para a empreitada. A agremiação, surgida em julho de 1969, tinha, já na sua gênese, um componente político-social que facilitaria qualquer ato contra a ditadura. Quem explica é o próprio Malfitani:

A Gaviões surgiu de um movimento dentro da torcida do Corinthians que buscava lutar contra duas ditaduras. A que dominava o Brasil de dentro dos quartéis e a do ex-presidente do Corinthians Wadih Helu.

Aqui vale explicar: Helu comandou o Parque São Jorge, praticamente sem oposição, de 1961 a 1971. Além disso, estava ligado aos movimentos politicamente conservadores da época, era integrante da Arena — partido ligado aos militares — , apoiou o golpe de 1964 e foi deputado estadual pela sigla, além de ter atuado como secretário de Administração no governo de Paulo Maluf (1979–1982).

Do plano à prática

Assim, da conversa de Fon e Malfitani, a ideia partiu do campo da teoria para a prática. Fon se encarregou da “produção” junto a outros companheiros do CBA:

No Comitê, éramos poucos e nos conhecíamos. Mesmo assim, mantínhamos as atividades compartilhadas, de forma que as pessoas de um grupo de trabalho não sabiam das tarefas dos outros — relata Fon.

Segundo ele, esse tipo de divisão ajudava a evitar vazamentos de informações. O que era muito producente e extremamente prudente em uma época em que o governo ainda mantinha mão de ferro, cuidando de tudo que fosse contrário aos seus desígnios.

MacDowell, também integrante do Comitê, recorda:

O Fon ficou responsável por conseguir a faixa. Isso foi, mais ou menos, uma semana antes da partida.

Por outro lado, Malfitani cuidou da logística, sendo elo com a Gaviões:

Quando o Fon me procurou, claro que eu disse que sim. Como havia fundado a Gaviões, tinha contatos lá dentro e procurei parte da diretoria. Como a torcida sempre teve esse componente político muito forte, de lutar pela democracia e pela liberdade, eles se prontificaram em dar apoio total ao ato.

Após as conversas com integrantes da organizada, ficou acertado que Fon e Malfitani teriam que se encarregar de levar a faixa até o Morumbi. Ali, encontrariam os integrantes da Gaviões nos portões de entrada. Por conta da divisão de tarefas dentro do CBA, Fon nunca soube quem ficou encarregado de produzir a faixa.

O meu grupo de trabalho se reunia no escritório dos advogados Ayrton Soares e Luiz Eduardo Greenhalgh. Ficamos encarregados de levar a faixa ao estádio e realizar o protesto. Greenhalgh, aliás, no dia do ato, organizou um plantão de advocacia para atender possíveis presos na manifestação — recorda.

Apesar dos cuidados dentro do Comitê, com as ações divididas em células, e da própria Gaviões, os dois jornalistas fizeram questão de divulgar a realização do protesto, como relata Fon:

Nosso objetivo era levar a mensagem ao povão. Por isso, nos dias anteriores à manifestação, avisamos os colegas da imprensa esportiva para que ficassem atentos. Claro que não demos detalhes a todos, mas contamos que a torcida do Corinthians preparava algo para o jogo.

Malfitani acrescenta:

Àqueles em quem confiávamos, demos detalhes de o que seria a surpresa. Principalmente para os fotógrafos ficarem atentos. O ato aconteceria na entrada do time do Corinthians, quando as atenções ficam no campo. Assim, conseguimos grande cobertura com fotos em vários jornais.

Fon completa:

Um dos que confiávamos era o Osmar Santos, locutor esportivo da Rádio Globo. Depois de saber o que faríamos, ele passou os dias anteriores ao clássico e boa parte da abertura da transmissão falando da promessa de uma novidade por parte da torcida do Corinthians.

Antes do ato e das fotografias, porém, ainda existia a questão da entrada da faixa no Morumbi. O sucesso dependia da passagem pelas catracas e pela possível revista dos policiais militares que atuavam na partida. Aí entrou a expertise dos integrantes da Gaviões.

No dia da partida, pela manhã, Fon passou na casa de MacDowell, integrante da Torcida Jovem, organizada do Santos. O jornalista já levava a faixa.

Ele chegou com a faixa toda amassada, mas como filho de dono de lavanderia, sabia como passar roupa. E ali mesmo, sobre a mesa da sala de jantar, passou a faixa e a deixou impecável — detalha o engenheiro.

Os participantes da agremiação pediram que Malfitani e Fon chegassem ao pátio do estádio antes de a bateria da organizada subir a rampa para ingressar na arquibancada superior. O fundador da Gaviões relembra:

O Fon chegou com a faixa em uma sacola. Do lado de fora do estádio, na concentração da bateria, eles abriram um tambor e colocamos o pano para dentro.

Fon, Malfitani e MacDowell ingressaram no estádio com o restante da Gaviões. Depois que todos se instalaram nos degraus, pouco antes da entrada do Timão em campo, o instrumento de percussão foi aberto e a faixa foi desenrolada.

Quando Sócrates e companhia pisaram no gramado do Morumbi, pouco antes das 17h, no alto da superior, com o santista MacDoweel ao lado da palavra “anistia”, próximo à separação da Gaviões da Jovem do Santos, e Fon ao lado de “irrestrita”, a faixa com os dizeres “anistia ampla, geral e irrestrita” foi aberta, ficando visível para todo o estádio. Nesse momento, das organizadas do Corinthians e do Santos — estes avisados por MacDowell — iniciaram-se uma salva de palmas e ovações.

Claro que a PM tentou subir para acabar com o ato e nos prender. Mas desde os primeiros degraus da arquibancada, no começo da subida, a Gaviões fechava as entradas. Costumo dizer que foram uns cinco ou dez minutos de confronto entre os policiais militares, tentando subir, e os torcedores, impedindo. Na verdade, não sei quanto tempo foi. Lá em cima, vendo tudo, cada minuto valia por cinco — recorda Fon.

A Gaviões ficava sempre no alto da arquibancada, centralizada entre as bocas de acesso daquele setor. Isso sempre dificultou a chegada da PM — explica Malfitani.

Após alguns minutos, os PMs acabaram desistindo de tentar retirar a faixa. Como a partida já estava sendo disputada no gramado encharcado pela chuva que, desabou e para não atrapalhar a visão e gerar insatisfação de quem ficou atrás do pano estendido, o grupo resolveu dar por encerrado o ato.

Depois que terminou o protesto, o Carlos me disse: “Fonzinho, não vou ficar aqui vendo o jogo do Santos no meio da torcida do Corinthians” — conta Fon.

O problema é que MacDowell não chegou até a torcida do Peixe, que estava logo ao lado. Bastou deixar a proteção da Gaviões para ser capturado pelos policiais militares, a poucos passos da área reservada aos santistas.

O engenheiro foi levado pelos PMs:

Como de praxe, foram truculentos. Um mais do que os outros, na delegacia do estádio. Ele me deu um chute na perna esquerda. Tenho a marca até hoje.

Depois dali, foram levados para o DOPS (Departamento de Ordem Política Social, a polícia política da ditadura), para prestarem depoimento. MacDowell conta:

Claro que não demos detalhes. Não tínhamos muito o que falar. E o Greenghalgh agiu rápido, conseguindo nos liberar ainda de noite. O curioso é que muitos agentes pareciam estar de saco cheio com esse tipo de prisão. Um deles chegou a resmungar “mas que merda”, como se achasse uma besteira prender alguém por aquele motivo.

Da faixa, ninguém mais ficou sabendo.

Depois só restou a foto

A partida se desenrolaria sem mais problemas, além da chuvarada que insistia em cair, principalmente nos primeiros minutos. O clássico terminou com a vitória do Timão, que dominou o jogo. O placar final foi 2 a 1, com gols de Sócrates, aos 26 do primeiro tempo, João Paulo empatando aos 37 da etapa inicial, e Palhinha, que fez o gol do triunfo corintiano aos 36 do segundo tempo.

Após o confronto, uma pequena confusão se formou entre o gramado e o túnel dos vestiários. Isso porque o ponta esquerda Tonho, reserva do Santos, foi detido pela PM, acusado de ter se desentendido com um dos fiscais da Federação Paulista de Futebol. Além disso, na superior, os policiais tentaram, sem sucesso, localizar os torcedores que abriram a faixa.

Claro que, depois do jogo, a PM agiu com aquela truculência natural com que age contra as torcidas organizadas e, principalmente, contra a Gaviões — critica Malfitani.

No dia seguinte, os jornais que circulavam às segundas, traziam, além da crônica do confronto, a foto da faixa estendida na arquibancada estampada em algumas colunas. A Folha de S. Paulo fez apenas um registro, que, em Jornalismo, chama-se de fotolegenda: “nas arquibancadas do Morumbi, uma nova faixa, erguida ontem pelos Gaviões da Fiel no meio da massa corintiana: um renovado apelo ao governo, pela anistia ampla e irrestrita”.

A Folha de 12 de fevereiro de 1979 publicou apenas uma foto-legenda.

O Globo deu um pouco mais de espaço. Junto à foto, um texto explicava o ato: “os Gaviões da Fiel cumpriram a promessa que haviam feito ao Comitê Brasileiro pela Anistia: abriram ontem grande faixa com os dizeres ‘anistia ampla, geral e irrestrita’, quando seu time entrou em campo. Mesmo assim, a faixa quase não foi percebida pelos torcedores que estavam no Morumbi. Com exceção, é claro, dos Gaviões, todos muito compenetrados na importância de sua atitude”, citou o texto do diário carioca.

O Globo publico uma matéria pequena.

MacDowell conta que, na terça ou na quarta-feira depois da partida, caminhava na rua quando fora parado por um casal jovem:

Eles pediram desculpas e perguntaram se eu era uma das pessoas envolvidas no protesto da anistia no Morumbi. Não sei como ficaram sabendo e como me identificaram. Depois disso, eles se solidarizaram, agradeceram pela atitude e me deram um abraço afetuoso. Aquilo foi uma atitude inusitada e emocionante.

Lógico que uma afronta como essa não passaria incólume aos órgãos de repressão, ainda em atividade apesar da abertura iniciada no governo Geisel. Malfitani recorda:

Dias depois, em uma pauta que fui produzir para a Veja, fui ao DOPS. Lá, em um mural, dei de cara com uma reprodução da foto do protesto, uma cópia ampliada. Certamente estavam tentando identificar quem estava segurando a faixa.

Já Fon iria encarar a Justiça da época pouco tempo depois. Por outro motivo, porém:

Menos de um mês depois eu fui denunciado em um Inquérito Policial Militar, baseado na Lei de Segurança Nacional, a pedido do ministro do Exército, general Walter Pires. Tudo por conta de duas reportagens, publicadas na Veja, com os títulos “Descendo aos Porões” e “Um Poder nas Sombras”.

Mas, como o próprio Fon comenta, essa é uma outra história.

A reportagem tem a colaboração de Diego Figueira, na revisão dos textos.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Roberto Jardim

Jornalista, dublê de escritor e pai da Antônia. Tudo isso ao mesmo tempo, não necessariamente nessa ordem. Autor dos livros Além das 4 Linhas e Democracia Fútbol Club.Como fazer jornalismo independente, mantém uma campanha de financiamento coletivo no Apoia.se, que ajuda na produção do projeto Democracia Fútbol Club, que tem o objeto de contar a história de jogadores e técnico, times e clubes, torcedores e torcidas que usaram a desculpa do futebol para irem além das quatro linhas.

Como citar

JARDIM, Roberto. E o futebol encarou a ditadura. Ludopédio, São Paulo, v. 116, n. 12, 2019.
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