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Contra o Futebol Moderno – 1# O Futebol Moderno

Victor de Leonardo Figols 24 de abril de 2014

Este texto inaugura a primeira série do blog O Campo, intitulada Contra o Futebol Moderno. Esta série será composta por mais três textos em que narraremos a experiência de clubes e/ou de torcidas que representam, de alguma forma, uma resistência ao Futebol Moderno.

A série contará com quatro textos. Nesse primeiro texto, o de abertura, falaremos um pouco sobre o Futebol Moderno, explicando o que esse futebol tem de moderno. Feito isso, passaremos a observar os exemplos de resistência a essa proposta modernizante do futebol. Falaremos da torcida do Clube Atlético Juventus e suas formas de resistência a esse novo futebol. Em um terceiro momento, contaremos a história dos torcedores órfãos que fundaram seu próprio clube, o FC United of Manchester. E por fim, falaremos do FC St. Pauli e como a torcida mudou os rumos do clube, e o transformou em uma referência de clube como forma de resistência. Mas afinal, o que é esse Futebol Moderno, e por que existem movimentos contrários a ele?

Certamente você já ouviu o termo Futebol Moderno. Existem pelo menos três definições do que vem a ser esse futebol. A primeira delas remete ao século XIX, quando o futebol ainda estava surgindo enquanto prática esportiva e longe de ser o que conhecemos hoje. Em 1863, após a fundação da Football Association (FA), as regras do futebol foram sistematizadas a partir do jogo praticado nas Public Schools britânicas. Posteriormente, para diferenciar esse novo futebol das práticas semelhantes, foi atribuído o termo Futebol Moderno. Assim, o novo futebol, organizado e sistematizado em regras, passaria a ser visto como moderno, enquanto as outras práticas semelhantes passariam a ser vistas como um futebol primitivo. Mas não é esse Futebol Moderno que é contrariado atualmente, que causa ódio e repulsa.

O termo torna a aparecer na Copa do Mundo de 1974, quando Holanda e Alemanha apresentaram um jogo coletivo que até então não existia no futebol mundial. Ainda durante essa Copa, o futebol da Holanda passou a ser chamado por jornalista e cronistas da bola de Futebol Total. Após a vitória da Alemanha sobre os holandeses na final, o futebol da equipe germânica também passou a ser chamado de Futebol Total. A forma de jogar futebol dessas equipes apresentou uma proposta modernizante ao esporte. Deste modo, a associação entre o Futebol Total e o Futebol Moderno aconteceu de maneira direta. Assim, falar de um jogo coletivo com movimentação intensa e com muita marcação e ofensividade era falar de um estilo moderno de se jogar futebol. Mas esse não é o Futebol Moderno contrariado e odiado por clubes e torcidas é outro.

Montagem: Pere Saguer – peresaguer.com.

O terceiro momento em que o termo Futebol Moderno apareceu foi nos anos 1980, quando o futebol passou por profundas mudanças. O processo de espetacularização do esporte tem início muito antes dessa década, mas foi nos anos 1980 em que essa espetacularização tomou conta do futebol. Na verdade, quem tomou conta do futebol foram as televisões. Acompanhando esse processo de espetacularização do esporte está a mercantilização do futebol. Os clubes abriram as suas fronteiras regionais e foram em busca de mercados consumidores. A internacionalização dos clubes foi um fator decisivo para o futebol conquistar novos territórios e, consequentemente, novos mercados. Aqui fica evidente o papel da televisão na difusão global dos clubes. Em outras palavras, o futebol passou a ser visto como um produto, um produto da indústria do entretenimento, um produto das televisões.

Como forma de garantir o espetáculo, e conseguir novos mercados consumidores, os clubes fazem investimentos milionários, além de gerar e movimentar milhões em contratações e em venda de produtos com a marca (escudo) do clube. As prioridades dos clubes mudam, o torcedor local perde sua importância enquanto os torcedores globais ganham. Nesse sentido, a globalização do futebol entra em choque com as peculiaridades regionais dos clubes.

Já na década de 1990, os clubes assumiram o papel de empresas. Esses clube-empresas passaram a enxergar o futebol como um produto. Nesse movimento de mercantilização, em que o futebol tomou forma, a figura do torcedor sofreu graves alterações. Na lógica mercantil do futebol ser torcedor significava ser um consumidor. A relação clube-torcedor foi deformada, abrindo um abismo entre o clube e sua torcida.

Os clubes ingleses foram os primeiros a enxergar o futebol dessa forma, mostrando para os outros que a fórmula era um sucesso, um sucesso econômico. Assim, esse novo futebol passou a ser visto como “moderno”. A proposta modernizante surgia como uma garantia de grande lucro para os clubes. É esse Futebol Moderno que corrói as relações entre clube e torcida, que distorce e deforma as tradições clubísticas.

Existe um movimento que vai de encontro à proposta modernizante, que busca manter ou recuperar as tradições que essa nova forma de enxergar o futebol destrói. Torcedores de diversos clubes se mobilizam em campanhas como Ódio ao Futebol Moderno ou Morte ao Futebol Moderno como uma forma de resistência. Eles questionam a globalização do esporte, os altos valores gastos nas contratações de jogadores, a midiatização do futebol (principalmente o papel da televisão), além do futebol como produto e do torcedor como consumidor.

É desse futebol moderno e corrosivo que iremos tratar nessa série, tomando como exemplo três experiências de torcidas que levantam a bandeira da resistência ao futebol como produto.

Esse texto foi originalmente publicado no blog O Campo e cedido para publicação nesse espaço.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. Contra o Futebol Moderno – 1# O Futebol Moderno. Ludopédio, São Paulo, v. 58, n. 7, 2014.
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