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A reconfiguração do circuito varzeano em Belo Horizonte

Raphael Rajão Ribeiro 11 de junho de 2020

Na série de textos que tenho publicado na sessão arquibancada, compartilho com os leitores alguns dos resultados do estudo integrante do Inventário do Futebol Amador em Belo Horizonte realizado entre 2016 e 2018. No artigo anterior examinei os usos sociais dos campos de várzea, os quais extrapolam suas funções esportivas e constituem equipamentos comunitários alvo de múltiplas apropriações pela população do entorno. Neste artigo, explorarei as recentes mudanças pelas quais o circuito varzeano tem passado.

O futebol amador em Belo Horizonte está articulado com o cotidiano da cidade e a transformação do perfil de sua população. Nessa perspectiva, é possível observar mudanças em suas formas de organização que respondem a inúmeros fenômenos que têm lugar na capital mineira. São novas dinâmicas que se adéquam a transições geracionais, culturais, tecnológicas e econômicas, as quais indicam uma capacidade de renovação da prática frente ao contexto do presente.

Há que se observar que da explosão populacional vivenciada pela cidade em meados do século XX até o presente, ao menos duas gerações se passaram. Se naquele momento de intensa migração de pessoas do interior ou de áreas rurais, prevaleciam elementos tradicionais na constituição do que se denominou aqui de cultura esportiva popular, atualmente são outros os referenciais que se articulam com essa mesma expressão.

Com o protagonismo de grupos cada vez mais associados a um referencial urbano, que tiveram toda sua trajetória de vida na metrópole, há que se considerar a esperada reconfiguração de algumas práticas. Nessa perspectiva, percebe-se o abandono de certos rituais na promoção das disputas, sendo o exemplo mais facilmente perceptível o dos festivais.

Conforme relato de vários entrevistados, tal celebração começou a entrar em desuso entre os times, especialmente na passagem do século XX para o século XXI. Todo o envolvimento dos clubes e das comunidades, com o respeito a vários rituais e a decoração do campo, não fariam mais sentido para as novas gerações, como destacou em entrevista Carlos Roberto Pimenta, o Fumê, ligado ao Pitangui, do bairro Lagoinha:

É… aquelas bandeirolas… era difícil, cercava o campo todo com aquele trem, patrono tinha que trazer uma bola. Nossa, o negócio era show de bola. Quem viu, viu… e infelizmente a meninada hoje, se você fala, você conta para um menino, eles ficam é rindo da gente… era um negócio simples, entendeu? Mas que chamava a atenção. (PIMENTA, Carlos Roberto [60 anos]. [mai. 2016]. Entrevistador: Raphael Rajão Ribeiro. Belo Horizonte, MG, 13 mai. 2016.)

Ainda que o formato de organização básico, com a elaboração de uma programação de jogos durante todo um fim de semana e a distribuição de troféus para os vencedores de cada partida, possa ser visto atualmente, o atendimento da ritualística em sua totalidade já não é mais encontrado. Hoje, são raros os clubes que ainda promovem festivais em comemoração ao seu aniversário, muitas vezes sem continuidade.

Para se compreender o sentido dessa e de outras mudanças, para além das transformações geracionais e a alterações dos referenciais culturais, há que se considerar a reconfiguração do circuito competitivo do futebol amador em Belo Horizonte, especialmente a partir da década de 1990. Como apontado anteriormente, até esse momento, o calendário de disputas dos clubes se organizava na participação no campeonato do Departamento de Futebol Amador da Federação Mineira de Futebol e, no fim do ano, caso tivesse alcançado sucesso esportivo, na Copa Itatiaia. Para além disso, preenchia seus fins de semana com amistosos, excursões e festivais. Esporadicamente, foram criados torneios promocionais, como a Copa Arizona e a Copa Dreher, além de disputas intermitentes promovidas pela Prefeitura.

Manchete do jornal Diário da Tarde sobre participação do Pitangui Esporte Clube na final nacional da Copa Arizona, 1976. Acervo: Pitangui Esporte Clube

Anos 1990

A partir do final dos anos 1990, o calendário passou a ser preenchido por outras competições oficiais. Em 1998, foi criada a Copa Centenário, organizada pela Prefeitura. 2004 foi o ano em que surgiu o Torneio Corujão, promoção da Rede Globominas. Além disso, na década de 2000, houve a nacionalização da Copa Kaiser, que passou a ter em Belo Horizonte uma de suas sedes. Tudo isso ocupou os fins de semana das agremiações mais tradicionais, reforçando o interesse dessas entidades na experiência competitiva do futebol amador, em detrimento de práticas desinteressadas.

Abertura da Copa Centenário no Estádio Independência, 2001. Acervo Secretaria Municipal de Esportes e Lazer de Belo Horizonte.

Paralelamente a isso, desde o final dos anos 1980, um costume que era apenas pontual, até então, começou a ser tornar mais usual. Reforçado pela ênfase na experiência competitiva, a oferta de vantagem financeira aos jogadores, que era um fenômeno restrito a número limitado de clubes, tornou-se abrangente. Com isso, ocorreu uma reconfiguração dos times.

Se no passado eles eram formados, principalmente, a partir de vínculos de vizinhança, amizade e parentesco, nesse novo contexto, havia a crescente preocupação com o aumento da qualidade técnica das equipes e a vinda de atletas de outras regiões, que não as referenciais de cada agremiação. Com a oferta de vantagens financeiras, o rodízio de jogadores se tornou maior, com uma intensa mobilidade desses.

A emergência de competições em cidade vizinhas, da região metropolitana, com o mesmo sistema de “contratação”, fazia com que muitos atletas dos times da capital, em determinados períodos do ano, fossem para essas cidades. Assim, a perspectiva de manutenção de um time durante todo o ano, como era no passado, não se confirmava mais para os clubes engajados no circuito competitivo, que a cada torneio tinham que remontar suas equipes.

Equipe do São Bernardo Esporte Clube em premiação pelo campeonato amador de Belo Horizonte, no Estádio Independência, 2016. Foto: Ricardo Laf.

Da mesma forma, os jogadores passaram a compartilhar uma cultura diversa, menos baseada em vínculos clubistas e mais voltada para a ideia de se manter em atividade durante todo o ano.

Nesse novo sistema, sem times formados por jogadores da localidade, a relação com as torcidas se transformou, já que, em muitos casos, não estava mais em campo um amigo, parente ou vizinho. Isso fez com que o interesse por jogos ordinários diminuísse. Contudo, a atuação em competições de prestígio, muitas delas com cobertura midiática, aproximava a comunidade do entorno, especialmente nas fases finais, quando jogos mais absorventes podiam ser presenciados.

Torcida do Roma Esporte Clube na final campeonato amador de Belo Horizonte, no Estádio Independência, 2016. Foto: Ricardo Laf.

O interesse pelos torneios oficiais e a dinâmica de montagem dos clubes também interferiu na organização do calendário, que não mais contava com um grande número de amistosos, como no passado. Esse tipo de partida restringe-se, agora, a momentos de preparação dos clubes, logo antes das competições, como forma de testar os novos atletas e dar entrosamento aos times. Da mesma forma, as excursões tornaram-se mais raras. Com facilidades de deslocamento e crescimento do futebol amador pelo interior, o antigo costume de se oferecer ajuda de custo às agremiação da capital entrou em desuso, desestimulando a saída das equipes belo-horizontinas.

Se por um lado, a nova realidade mais focada em competições oficiais, alterou a cultura varzeana, com afrouxamento de vínculos entre o time e a comunidade e abandono de formas de organização tradicionais, por outro, novas expressões da prática reativam esses laços e revigoram a relação com os territórios.

Esse é o caso do crescimento recente dos torneios independentes. Criados por clubes ou indivíduos, essas competições não oficiais, em boa parte de caráter regional, tendem a reavivar rivalidades locais e movimentar os campos espalhados pela cidade. São campeonatos de duração média que aceitam a inscrição tanto de times federados como de não filiados. Muitas vezes dividem-se em duas chaves, a do sábado e a do domingo.

Logo da Copa BH Libertadores da Várzea, organizada pela Liga dos Não Filiados de Belo Horizonte, 2020. Fonte: site futebolbh.com.br

 

Nesse sentido, cumprem o papel que era ocupado pelos festivais de reiterar laços locais, com a disputa centrada entre clubes da mesma vizinhança, o que atrai o interesse do público.

É especialmente exemplar o caso das chaves de sábado, onde se concentrar as equipes não federadas. Como dito acima, há muito, os clubes de maior destaque, filiados à Federação Mineira de Futebol organizam-se em times com pouco vínculo comunitário, com a vinda de muitos atletas em troca de vantagens financeiras. Esses atuam principalmente aos domingos, quando se disputam os torneios da categoria masculino adulto.

Sendo assim, é no sábado que os atletas têm oportunidade de jogarem com seus amigos, em times de maior representatividade local. Sem a pressão de estarem atuando em troca de vantagem, podem desempenhar de forma mais descontraída. O fato de estarem entre amigos também incentiva a manutenção das confraternizações pós-jogo, as chamadas “resenhas”. Nessa perspectiva, observa-se que os vínculos com o território e a torcida permanecem, ainda que numa dinâmica nova.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Raphael Rajão

Autor de A bola, as ruas alinhadas e uma poeira infernal: os primeiros anos do futebol em Belo Horizonte (1904-1921). Graduado e mestre em História pela UFMG. Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Escola de Ciências Sociais FGV CPDOC. Atualmente pesquisa o futebol de várzea em Belo Horizonte.

Como citar

RIBEIRO, Raphael Rajão. A reconfiguração do circuito varzeano em Belo Horizonte. Ludopédio, São Paulo, v. 132, n. 25, 2020.
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