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Brincadeiras sexuais e intolerâncias no futebol: o caso dos jogadores gaúchos

Wagner Xavier de Camargo 9 de julho de 2017

Esta primeira semana de julho foi marcada por uma situação no futebol, amplamente divulgada pela mídia, que assumiu proporções catastróficas para os envolvidos e que lançou à opinião pública elementos para (re)pensar a sexualidade no meio esportivo. Trata-se da curta cena de onze segundos, filmada em tomada única e logo em seguida compartilhada virtualmente, em que três jogadores do Sport Clube Gaúcho (equipe da 3ª divisão do campeonato sul-rio-grandense), da cidade de Passo Fundo, participam de uma brincadeira sexual envolvendo sexo oral e masturbação.

Contrariando opiniões ouvidas de colegas de trabalho, amigos e mesmo pessoas próximas, vou acatar a versão dos jogadores de que foi apenas uma “brincadeira” e quero insistir que todos, inclusive grande parte da mídia, estão focando no ponto errado, isto é, não se trata de comentar a cena, analisar os motivos ou causas e consequências do ato dos jogadores; trata-se, sim, de considerar a que ponto estamos chegando na ridicularização imbecil do outro (e, às vezes, de nós mesmos) com filmagens momentâneas e, sobretudo, nesse incessante e absurdo partilhamento da intimidade sexual.

Os jogadores foram desligados por Gilmar Rossi, presidente do clube gaúcho, que veio a público negar qualquer atitude sua que fosse homofóbica, ou seja, de aversão à suposta homossexualidade dos indivíduos. E justificou para a imprensa que houve indisciplina na divulgação de filmagens das dependências do clube sem sua expressa autorização. Não precisa ser muito inteligente para perceber o quão escamoteado estão as reais impressões suas (e, supostamente, de toda a diretoria do clube) de ojeriza e repulsa discriminatória às brincadeiras sexuais dos jogadores envolvidos.

Além disso, e aprofundando o nível de análise, não se trata de considerar a masturbação e o sexo oral nos moldes da castradora sociedade vitoriana do século XIX, mas sim de pensar que eles fazem parte de um conjunto de práticas sexuais componentes do universo maior da sexualidade humana – mesmo se tomarmos apenas a heterossexualidade como o “padrão hegemônico”. O prazer está à disposição do corpo, que goza pelos orifícios e outros meios, das mais distintas e múltiplas formas possíveis.

Entrada da sede do Sport Clube Gaúcho. Foto: Sport Clube Gaúcho/Divulgação.
Entrada da sede do Sport Clube Gaúcho. Foto: Sport Clube Gaúcho/Divulgação.

O problema é que, no universo social, vivemos a ditadura da heterossexualidade compulsória, ou seja, todos temos que, obrigatoriamente, desempenharmos práticas heterossexuais, nas quais homens buscam mulheres e mulheres buscam homens. Sob essa lógica, desde o nascimento os indivíduos são determinados a executarem uma sexualidade baseada em seus órgãos genitais, buscando sempre o sexo oposto. Se possuir pênis deve, necessariamente, “ser homem” e exercer todas as prerrogativas socialmente instituídas sobre os chamados “corpos masculinos”; se possuir uma vagina, o indivíduo será considerado “mulher” e, por conseguinte, carregará o fardo que a sociedade lhe impõe como “corpo feminino”: ser obediente, sexualmente passiva, maternal e, sobretudo, feminina! A heterossexualidade compulsória determina a dupla pênis-vagina como o modelo de coito oficial e nada além (ou diferente) disso é legitimado.

Para embolar um pouco mais o meio de campo, metáfora tão usada no futebol, temos que essa modalidade apresenta larga história em nosso país e, em muitos casos, adquire ares de religião, exercendo poder quase sobrenatural sobre os indivíduos. Essas prerrogativas instituídas colocam seus espaços como sagrados, devendo ser respeitados em sua máxima totalidade. O vestiário esportivo no contexto do futebol é um desses. Como sagrado, nada nele pode fugir de um script pré-determinado sobre os comportamentos almejados, prescritos, direcionados relacionados à modalidade. Além de sagrado, o vestiário é um local de tabus, justamente por congregar corpos nus em movimento constante, que se entreolham ou se tocam. Por isso que, em que pese histórias de sexo com mulheres nesses lugares terem sido relatadas por alguns outros jogadores famosos, a notícia de um sexo grupal entre jogadores considerados “homens” não somente ofendeu o espaço da masculinidade dominante, como colocou em xeque-mate a própria pretensão da heteronormatividade instituída nele.

Nesse sentido, qualquer manifestação divergente, errática, dissonante relativa às sexualidades (e mesmo aos desejos) é passível de ser execrada e condenada peremptoriamente. Garotos são criados e educados, desde a mais tenra infância, para serem varões, que apresentem comportamentos masculinos, agressivos, impositivos e viris. E jogadores de futebol não são exceção!

Por outro lado, a tão comum prática contemporânea do sexting (partilhamento via internet de imagens ou vídeos de conteúdo sexual) é algo disseminado em toda a sociedade e, por meio das redes sociais, pessoas se mostram ao vivo, mandam suas fotos, partilham conteúdos íntimos num frenesi assustadoramente acrítico. Os jogadores de futebol, por sua vez, não estão isentos dela, nem esses do Sport Clube, nem outros dos ricos e poderosos clubes europeus.

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As brincadeiras sexuais aconteceram no vestiário do Sport Clube Gaúcho. Foto: Divulgação.

Dessa forma, e para concluir, vejo duas questões nesse episódio da brincadeira sexual entre os jogadores que até agora não li em artigo algum divulgado na imprensa. Em primeiro lugar, a situação da masturbação e do sexo oral causa estranheza generalizada (ocasionando, inclusive, piadas e chacotas) porque o senso comum atribui à heterossexualidade a fatalidade de ser normativa e binária: “homens” fazem sexo com “mulheres” e isso deve se dar de forma “obrigatória”. Portanto, o que rolou ali entre os jogadores homens num vestiário masculino só pode ser classificado como “aberrante”, “estranho”, digno de ser “condenado”. Jamais passou pelas considerações do senso comum que a própria heterossexualidade pode ser múltipla e heterogênea, o que possibilitaria homens heterossexuais fazerem sexo anal com outros homens (ou, igualmente, serem penetrados por mulheres), ou gostarem de tocar e serem tocados por outros homens, ou ainda, possuírem desejos de serem masturbados por outros iguais.

Em segundo lugar, o espaço do vestiário tem que ser dessacralizado, tornado mais humano e mais profano, permitindo que os indivíduos possam, até mesmo, explicitarem livremente seus desejos e fetiches. Afinal, é o único lugar no esporte em que habitam corpos despidos das máscaras sociais alocadas pelo vestuário. Portanto, defendo mais “brincadeiras sexuais” em tais espaços, que podem tanto ser mais saudáveis, quanto produtivas.

Finalmente, é frente a episódios como este em que sou mais otimista em relação aos/às que me cercam. Em que pese a situação de masturbação/sexo oral dos jogadores gaúchos estar envolta por preconceitos e intolerância, sua aparição num cenário fora dos gramados pode ser sintomática de mudanças à vista. O esporte (e, em particular, o futebol) não conseguirá se manter por muito mais tempo fechado à diversidade (sexual), às múltiplas orientações sexuais e à reivindicação de reconhecimento de outros corpos desejantes, que habitam os espaços esportivos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Brincadeiras sexuais e intolerâncias no futebol: o caso dos jogadores gaúchos. Ludopédio, São Paulo, v. 97, n. 9, 2017.
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