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“Beijos Olímpicos Gays” e o que dizem sobre gênero no esporte?

Wagner Xavier de Camargo 1 de abril de 2018

Certa vez, em 2008, numa palestra sobre atletas gays no mundo esportivo, um estudante me perguntou o que eu achava que seria necessário para uma aceitação da diversidade sexual no esporte, por parte da opinião pública. Como não esperava tal questão, respondi num rompante “um beijo gay”, o que fez com que todo o auditório caísse na gargalhada. Apesar disso, complementei, deveria ser tal beijo de um importante atleta, particularmente medalhista, e adorado pela mídia e por todos, o que poderia iniciar um processo de reflexão mais sistemático sobre outras estéticas sexuais no esporte. Ainda, como exemplo, citei Michael Phelps, que mesmo não sendo gay, havia recém-saído de uma campanha extremamente bem-sucedida de recordes e medalhas nos Jogos Olímpicos de Pequim, China. Alguém como ele poderia causar revisão de pontos de vista.

Pois, passados alguns anos dessa palestra, vimos um beijo acontecer sob os holofotes da mídia durante os Jogos Olímpicos do Rio, em 2016. No final de uma partida de rúgbi feminino, a jogadora Isadora Cerullo, trocou um beijo digno de nota com a namorada de dois anos, Marjorie Enya. Ele veio logo que Cerullo foi pedida em casamento. O momento foi marcante e as imagens rodaram o mundo. Era, então, o primeiro “beijo olímpico gay” publicamente anunciado, por assim dizer. Agora em 2018, nos Jogos de Inverno de Pyeongchang, uma emissora de televisão transmite um beijo entre o atleta Gus Kenworthy e seu namorado, Matthew Wilkas. Apesar de Kenworthy ter confessado que pensou nisso quando ganhou a medalha de prata em Sochi-2014 no esqui slopestyle (estilo livre), na época ele ainda estava no “armário” e desistiu da ideia do beijo olímpico público (MARTINELLI, 2018).

Beijos podem ser mais rápidos ou mais demorados; podem ser emocionados, como no contexto dos Jogos do Rio entre Cerullo e Enya, ou podem ser apenas “selinhos”, como o de Kenworthy e Wilkas. Beijos podem ocorrer em todas as partes e demonstram, notadamente, afetos recíprocos. E é exatamente por causa disso que, no meio esportivo, causam bastante aversão. O contexto esportivo prima pela técnica, pela reprodutibilidade de gestos e movimentos, pela racionalidade. Momentos emotivos como choros ou expressões de afeto como beijos nunca são bem-vistos.

Dos beijos olímpicos em questão, em que pese serem demonstrações emotivas não muito bem-vindas nos contextos, tendo a pensar que o beijo entre Kenworthy e o namorado cause mais polêmica do que o outro, apesar de ter sido mais rápido e curto. Primeiro, porque se deu entre dois homens, que apresentam características legitimadas pelo universo masculino (barbas, músculos, beleza física e voz máscula). E, segundo, porque na cultura machista que vigora na sociedade (e também no esporte) duas mulheres se beijando sempre está relacionado ao fetiche que, supostamente, representam para espectadores homens heterossexuais que as assistem. Há uma quase total desconsideração sobre o fato de serem lésbicas (e, portanto, não heterossexuais) e que têm desejos uma pela outra. O beijo das duas mulheres em questão não macula o esporte como “lugar” masculino por excelência (DUNNING, 1992). O deles, sim!

Mas há algo que une esses dois beijos gays e históricos: a ocupação do espaço esportivo mainstream por sujeitos não conformes com a heteronormatividade instituída e que não teriam o direito de lá estarem. Quando Kenworthy postou em seu Twitter dias antes “Estamos aqui, somos queer. Acostumem-se!” é isso o que há de disruptivo nesses beijos, considerados “manifestações não legítimas” no contexto da heterossexualidade. Isto foi sempre o que chamei atenção em todas as vezes que me manifestei sobre outras identidades sexuais e de gênero habitando os espaços esportivos, ou seja, é necessário ocupar tais espaços de modo consequente. Não basta “ser gay” em casa e jogar, saltar ou esquiar “como homem”, reproduzindo a máxima de senso comum segundo a qual “o que importa são os resultados”. O pessoal é político e a ocupação do espaço por gays, lésbicas ou outros sujeitos sexuais deve estar à mostra!

 

Certamente, na história dos esportes olímpicos modernos, participaram atletas que não se afinavam com a estética da heterossexualidade, mas por receio das consequências, acabaram se restringindo à (suposta) segurança do que era legitimado social e esportivamente. Alguns/mas tiveram suas orientações sexuais e mesmo identidades de gênero descobertas – como apontei em alguns casos (CAMARGO, 2017a; 2017b). Poucos/as permaneceram no esporte na condição de sujeito “desviante” das normas de gênero e, menos ainda, mantendo relações homoafetivas.

Meu único temor enquanto pesquisador sobre gênero no esporte é que a ocupação dos espaços esportivos por pessoas LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e demais) pode, com o tempo, não ser aceita de modo efetivo pela opinião pública. Explico melhor: assistir Kenworthy e Wilkas trocando um beijo até causa certo incômodo, mas isso logo será superado porque são brancos, bonitos, masculinos, posam para revistas, são ricos e, quer queiram ou não, estão inseridos num mundo de pleno de consumo (capitalista). Mas, e quanto aos inúmeros outros corpos, pretos, indígenas, transexualizados, efeminados, indefinidos, não apreciados ou considerados “feios” pelo padrão ocidental de beleza? O que seria noticiado na imprensa internacional o beijo de dois gays negros e efeminados, ou mesmo entre duas atletas intersex, após uma corrida de 100 metros rasos numa edição dos Jogos Olímpicos de Verão?

Se você pensou em “tolerância”, essa não é a resposta! É preciso mais do que isso. A alteridade deve ser respeitada e encampada nas considerações e discursos, nas posturas e tratamentos. Falar em nome da “causa LGBT+” do lugar de establishment que ocupam – tanto Kensworthy quanto Addam Rippon falaram nos Jogos de Inverno da Coreia do Sul (KORNHABER, 2018) – é uma coisa. Entretanto, ainda há no outro lado dos que vivem sob essa tirânica sigla, os “não padronizados”, os abjetos, os excluídos, os “sem voz” – pela etnia, pela classe social, pela cor da pele, pela sexualidade ou por quaisquer outros marcadores.

Contudo, voltemos aos beijos olímpicos. Quero acreditar que o hábito de beijar companheiros/as do mesmo sexo durante os eventos esportivos de amplo apelo midiático em sinal de afetividade (como presenciei inúmeras vezes nas competições dos Gay Games) possa ser, algum dia, sinônimo de “normalidade” – não exatamente porque necessita da aceitação plena de todo mundo, mas porque a humanidade desenvolveu sensibilidade suficiente para convencionar isso socialmente como aceitável.

Os beijos olímpicos são um gesto que apresenta um forte potencial de mudança cultural. Kenworthy ganhou medalha em Sochi-2014, mas estava no armário. Pensou no beijo olímpico já naquela época, porém não teve coragem de efetuá-lo. Desde que se assumiu “homossexual” nos idos de 2015 tem permanentemente militado ativamente pela presença e aceitação de sujeitos LGBT+ no esporte. Isso é louvável, pois em sendo ainda ativo nas competições, pode influenciar opiniões sobre gênero nos espaços esportivos.

Por isso, precisamos de mais “beijos olímpicos gays” para mudar hábitos e convenções sociais. Eles são a ponta do novelo de linha que, quando puxada, se faz necessária para desembaraçar outros (e novos) nós nas concepções sobre sexualidade dissidentes de corpos esportivos!

 

Referências Bibliográficas

CAMARGO, Wagner Xavier. “O dia em que conheci Stella Walsh”. LUDOPÉDIO, São Paulo. V. 94, n. 2, 02 abril de 2017a.

_____________. “Justin Fashanu: jogador profissional de futebol, negro e gay!”. LUDOPÉDIO, São Paulo, v. 98, n. 6, 06 agosto de 2017b.

DUNNING, Eric. “El deporte como coto masculino: notas sobre las fuentes sociales de la identidad masculina y sus transformaciones”. ELIAS, Norbert y DUNNING, Eric. Deporte y ocio en el proceso de la civilización. Madrid: FCE, 1992.

KORNHABER, Spencer. “The Out Olympics”. The Atlantic. 2018. Acesso em 17 fev. 2018.

MARTINELLI, Andréa. “O beijo gay histórico entre Gus Kenworthy e Matthew Wilkas na Olimpíada de Inverno em PyeongChang”. Huffpost.com. Acesso em 19 fev 2018.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. “Beijos Olímpicos Gays” e o que dizem sobre gênero no esporte?. Ludopédio, São Paulo, v. 106, n. 1, 2018.
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