96.11

Duro golpe no esporte praticado por atletas LGBT

Wagner Xavier de Camargo 11 de junho de 2017
arcoiris
Bandeiras sobrepostas do arco-íris, São Francisco, 2014. Foto: Torbakhopper (CC BY-ND).

Programado para acontecer entre 26 de maio e 04 de junho deste ano, na cidade de Miami, Estados Unidos, a quarta edição dos World OutGames foi catastroficamente cancelada, deixando algumas centenas (talvez milhares) de atletas amadores e profissionais bastante frustrados. O evento é uma competição multiesportiva para pessoas LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros).[1] A justificativa para o cancelamento das cerimônias de abertura/encerramento e das modalidades (apenas três foram mantidas dentre as mais de 20, pois ocorriam independentes da organização geral), apregoada logo na entrada do site oficial do evento, argumentou “problemas financeiros” de ordem geral. Mas passado alguns dias e muitas especulações, de fato, ainda a maior parte do público diretamente envolvido não sabia ao certo o que aconteceu para que um evento de uma proporção tão grande pudesse ser cancelado.

O formato OutGames surgiu nos idos dos anos 2004 por iniciativa de um grupo dissidente que se dizia descontente com os Gay Games, única opção de evento esportivo à época direcionado a atletas LGBT+. O ponto crítico para essa formação foi o desentendimento entre a Federação dos Gay Games (FGG) e a cidade de Montreal, no Canadá, então escolhida para ser sede organizadora da 7ª edição dos Gay Games em 2006. Um longo período de encontros, debates, discussões se seguiu até que o tal grupo dissidente, capitaneado por Mark Tweksbury, canadense e ex-atleta de natação, criou a GLISA (Associação Esportiva Internacional Gay e Lésbica). Com ela o OutGames ganhou vida, um evento que se propunha bem diferente dos Gay Games, baseando-se em outras demandas do cotidiano daquelas pessoas, como direitos humanos, culturas minoritárias, exclusão racial e mais participação do que rendimento esportivo. O próprio Tweksbury, em meados de 2005, veio ao Brasil falar sobre a iniciativa em formação (LAJOLO, 2005).

Com a objetivo de fazer oposição à FGG (fundada em 1982 nos EUA e até hoje em atuação), os OutGames estruturaram-se rapidamente e, de um ponto de vista mais geral, propuseram amplas e diferentes dimensões à prática esportiva organizativa dos LGBT+, com um calendário quadrienal para os World OutGames, uma proposta de eventos regionalizados por continente (e alguns logo foram executados, como o North American OutGames e Asia-Pacific OutGames, por exemplo) e uma forte intenção de mudanças. Neste contexto histórico, a FGG mantinha o monopólio das contendas em nível mundial e imputava taxas de inscrição cada vez mais altas (DAVIDSON, 2002).

Tewksburry tornou-se, então, o primeiro presidente do Comitê Organizador dos OutGames e o apelo global para seus “jogos alternativos” logo despertou a ira da FGG, e um fogo cruzado foi estabelecido sobre quem detinha o know how e o monopólio de realização de competições específicas para atletas LGBT+ em escala planetária: de um lado, os americanos e sua “política de orgulho” dos Gay Games; de outro, os canadenses, parte dos europeus e a esmagadora maioria dos países “fora do circuito” (como alguns da Ásia, da América Central e até da África), que defendiam vias alternativas de participação além das que eram oferecidas pela FGG. O sucesso da primeira edição dos World OutGames, ocorridos em agosto de 2006 em Montreal, foi surpreendente: cerca de 16 mil participantes, mais de 20 esportes e 2000 delegados mostraram à FGG e ao mundo que uma via alternativa ao establishment era possível. Apesar do também sucesso dos VII Gay Games, ocorridos em Chicago duas semanas antes e envolvendo 12 mil participantes em cerca de 30 esportes, muitos/as militantes, atletas e mesmo acadêmicos/as LGBT acreditavam num profundo redimensionamento das práticas organizacionais e das formas de governança institucional de ambos os grupos-líderes – o que, de fato, acabou acontecendo com o passar dos anos (WASHINGTON; McKAY, 2011).

Para indivíduos LGBT+ loucos/as por esporte, uma estrutura paralela ao esporte convencional, dentro do circuito mundial de competições esportivas e à disposição a partir de um calendário quadrienal/bianual de eventos continentais, mundiais e olímpicos era algo muito excepcional.

Contudo, apesar de ter sido bem-sucedido em sua primeira edição e ter aglutinado em torno de si aproximadamente 500 mil espectadores, os World OutGames 2006 deixaram um rombo financeiro nas contas públicas de Montreal. Segundo divulgação posterior à realização do evento, apesar do balanço positivo em assistência de participantes, os jogos acabaram com um déficit de CA$ 5.7 milhões de dólares canadenses (algo por volta de US$ 4.3 milhões de dólares americanos à época), além de solicitação de um pedido de proteção contra falência, feito pelo comitê organizador do evento.

Folder propaganda dos World OutGames 2009, em Copenhagen ,Dinamarca (Acervo Wagner Camargo)
Folder propaganda dos World OutGames 2009, em Copenhague, Dinamarca. Acervo: Wagner Camargo.

Sua segunda edição ocorreu em Copenhague-2009 (Dinamarca). De forma mais modesta, contou com 5 mil participantes/atletas, de 92 países, em pouco mais de 20 esportes. Se não fosse novamente por um suporte financeiro de 1 milhão de Euros da prefeitura da cidade, o balanço geral das contas do comitê organizador teria sido também deficitário. Presente nestes jogos e nos de Antuérpia-2013 (Bélgica), vi o modelo dos OutGames definhar a olhos vistos em seu terceiro ciclo quadrienal. Nessa última edição, por exemplo, não houve divulgação dos números oficiais para jornalistas e pesquisadores/as, como havia acontecido em circunstâncias anteriores.

Ao passo que a participação e assistência de atletas e público decrescia nos OutGames a cada evento, os Gay Games mantinham-se estáveis em participação acima dos 10 mil por edição: assim aconteceu em Colônia-2010 (Alemanha) e Cleveland-Akron-2014 (EUA). Muitas vezes me detive pensando em qual era o “segredo” dos Gay Games, se é que havia um: tradição em organização esportiva, know how, idoneidade e transparência das contas, sorte, ou apoio de empresas norte-americanas gay-friendly? Se alguns desses fatores ou outros, pouco importa. Penso que a partir da criação dos OutGames e do ponto de vista de organização esportiva então estruturada, todos ganhariam com duas instituições responsáveis no planejamento e realização de competições esportivas LGBT+. Se mais rendimento ou mais festival, o importante era que se alternavam no calendário, criando oportunidades de participação.

Notícias jornalísticas recentes trazem um aspecto sombrio que só o futuro nos dirá se tem fundamento: o comitê organizador dos World OutGames de Miami será investigado por fraude e desvio de recursos, algo que já havia sido suspeitado anos antes. Se fraude ou negligência, o fato é que ainda é bastante audível a reclamação de atletas, técnicos e equipes inteiras, que gastaram quantidades imensas de recursos para estarem em Miami (sem contar os aborrecimentos para se tirar o visto americano na Era Trump) e não puderam competir de forma adequada. Como acompanho tais eventos esportivos há anos, mesmo de longe pude ver o desespero hora-a-hora de quem estava inscrito no atletismo, uma das modalidades que somente ocorreu por força de vontade e determinação de alguns poucos/as participantes. Outras modalidades tiveram que trocar ginásios e espaços privados à prática esportiva por espaços públicos a céu aberto, ou ainda, por praias e parques.

Tudo isso significa, infelizmente, a morte da GLISA e a (suposta) predominância do monopólio de organização esportiva da Federação dos Gay Games. Espero, como pesquisador e atleta do esporte praticado por pessoas LGBT+, que a federação norte-americana tenha aprendido algo ao longo desses anos e com esse episódio, a fim de melhorar o entendimento de seu papel social e responsabilidade perante este público.

No que me afeta, não quero acreditar que venceu o conservadorismo, o modelo cômodo sobre o incômodo, o alto nível esportivo sobre o amadorismo ou a festividade, o estabelecido sobre o alternativo, pois num mundo de corrupções múltiplas, desgraças e desesperanças infinitas, isso seria, de fato, o fim das primaveras para o esporte LGBT+.

Num lapso de ironia do destino, os OutGames, que haviam nascido bem longe do solo estadunidense, falecem justamente aí, no berço do orgulho gay e na casa de seu contraponto, os Gay Games. O que acontecerá só o futuro nos dirá. Mas que o movimento esportivo LGBT+ não será mais o mesmo depois desse golpe, isso certamente se pode afirmar.

 

[1] Como não há consenso na abreviatura das siglas, variando de “LGBT” à “LGBTIQ” (nesse caso, com inclusão de sujeitos intersex e queers), preferi nesse texto de divulgação usar a sigla mais comum acompanhada de um sinal de positivo (+), significando “LGBT e demais sujeitos”, como os mencionados anteriormente e outras identidades de gênero não heteronormativas.

 

Referências Bibliográficas

DAVIDSON, Judy. The ‘pay’ games: the commodification of the gay games and cultural events. In: CANADIAN CONGRESS ON LEISURE RESEARCH.10., Alberta, 2002. Annals… Alberta, 2002. p. 01-05.

LAJOLO, Mariana. Gays se organizam para tirar esporte do armário. In: Folha de S. Paulo, Caderno Esporte, 29 mai 2005, p. D2.

WASHINGTON, Marvin; McKAY, Susan. The Controversy over Montréal: the creation of the Outgames in the field of Gay and Lesbian Sports. Canadian Journal of Administrative Sciences. 28 (4): 467-479, 2011.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 13 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Duro golpe no esporte praticado por atletas LGBT. Ludopédio, São Paulo, v. 96, n. 11, 2017.
Leia também:
  • 174.11

    Mídia e direito de torcer no futebol: a Canarinhos LGBTQ+ pela democratização dos estádios

    Marcelo Resende
  • 174.9

    Henry Kissinger, a ditadura na Argentina e a Copa do Mundo de 1978

    Adriano de Freixo
  • 169.22

    Women’s World Cup will highlight how far other countries have closed the gap with US – but that isn’t the only yardstick to measure growth of global game

    Adam Beissel, Andrew Grainger, Julie E. Brice, Verity Postlethwaite