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Ainda sobre a cultura esportiva popular

Raphael Rajão Ribeiro 13 de novembro de 2019

No texto anterior, tentei responder se haveria uma cultura esportiva própria do futebol de várzea. Como relatado, essa questão orientou o desenvolvimento do Inventário do Futebol Amador em Belo Horizonte realizado entre 2016 e 2018. Para tanto, tratei de duas formas recorrentes de organização de disputas que fazem parte do esforço dos integrantes das agremiações de manterem um calendário ininterrupto de partidas nos fins de semana: os amistosos e as excursões. Neste artigo, tratarei de outros três formatos: os festivais, os jogos festivos e os torneios avulsos.

A forma mais tradicional de organização do futebol de várzea, que indica a constituição de uma cultura própria, talvez seja o festival. Prática recorrente no passado, era realizado em comemoração ao aniversário dos clubes. Esses torneios, que ocorriam ao longo de um fim de semana ou de um domingo, reuniam, em seu programa, diversas partidas entre as diferentes equipes das agremiações, desde as categorias menores, formadas por garotos, passando por veteranos e mulheres, até o time principal masculino adulto.

Programa do festival esportivo pela passagem do 36º aniversário do Inconfidência E.C. Pasta do Inconfidência no Departamento de Futebol Amador da Capital. Foto: Acervo Inconfidência Esporte Clube.

Para cada um dos jogos, era convidado um adversário, seja um clube da região, seja um time de renome. Todas as disputas previam premiação específica, sendo convidadas pessoas para assumirem a condição de patronos do troféu, responsáveis pela compra do artefato que era oferecido aos vencedores. Padrinhos ou madrinhas da bola eram comuns, cabendo a eles ofertarem o material esportivo que seria utilizado num determinado certame. Outra figura recorrente nessas festividades eram as rainhas, escolhidas entre uma das garotas da comunidade, ela se apresentava no embate final, a chamada “Prova de Honra”, e oferecia o prêmio aos ganhadores.

Esse formato de competição faz referência a diversas tradições esportivas e culturais. A começar pela recorrência a uma estrutura utilizada ainda nos primeiros anos de desenvolvimento do esporte, como eram os festivais. Além disso, a adoção de ritual baseado na escolha de patronos, padrinhos e madrinhas, rainhas e princesas, conecta-se a uma variedade de manifestações populares, a exemplo das festividades juninas, do carnaval e dos reinados.

A própria decoração recebida pelos campos permite essas comparações, uma vez que era composta por bandeirolas estendidas ao longo de toda sua extensão, formação de arcos de bambu e colocação das bandeiras dos times participantes.

Campo decorado em dia de festival no campo do Pitangui Esporte Clube, anos 1960. Foto: Acervo Pitangui Esporte Clube.

Os dias de partidas, que atraíam um grande público, começavam logo cedo, ainda ao nascer do sol, quando todos eram despertados pela salva de 21 tiros de fogos de artifícios, a Alvorada. Em muitos casos, conforme a relação entre as agremiações, a comunidade e a paróquia local, era realizada uma missa em ação de graças ao aniversário do clube, podendo ser campal ou na igreja mais próxima. Para entidades com sede, havia, ainda, a promoção de um baile de gala, ao final do evento.

Toda essa movimentação representava ocasião de forte envolvimento da comunidade local, seja na preparação da decoração do campo, na ocupação de postos de patrono do troféu ou de padrinho ou madrinha da bola, de rainha do festival ou ainda, por meio de recebimento de homenagens feitas ao início de cada uma das partidas. Essa programação era sinônimo de bons públicos, ocasião para que os moradores do bairro gerassem renda extra, com a venda de comidas e bebidas, seja de forma ambulante, seja com a montagem de barraquinhas.

Rainha junto aos troféus em festival do Campo Verde, anos 1980. Acervo: Campo Verde Futebol Clube.
Pontapé inicial em festival da Associação Esportiva Suzana, anos 1980. Foto: Acervo Antônio Jorge Silva.
Entrada em campo de capitães, madrinha da bola e patrono em festival da Associação Atlética Tupinense, anos 1980. Acervo: Dilson Geraldo Veloso.
Cobrança de pênaltis em festival do riviera Atlético Clube, anos 1980. Acervo: José Pimenta Gomes de Oliveira.

A divulgação dos festivais se dava de inúmeras formas. A mais tradicional delas era a confecção de programas impressos, para o que, muitas vezes, os clubes contavam com o apoio de comerciantes locais. O material era afixado em estabelecimentos da região e distribuído às demais agremiações, para que divulgassem entre seu público. Por longos anos, houve espaços de cobertura do futebol amador na imprensa local, a exemplo de faixa de horário na Rádio Itatiaia e página no Diário da Tarde. Esses eram canais de difusão, inclusive dessas comemorações de aniversário das entidades.

O festival, por muito tempo, foi central na organização do calendário dos clubes de futebol de várzea, sejam aqueles engajados no circuito competitivo oficial, sejam os não institucionalizados. Exemplos disso eram os recorrentes cancelamentos de jogos por torneios oficiais por conta da realização de celebrações de aniversários das agremiações. Ou ainda, o fato de serem essas as ocasiões escolhidas para estreia de novos uniformes pelas entidades.

Tratava-se de um ritual de reiteração de laços entre o clube e seus apoiadores, sejam eles integrantes da comunidade ou de grupos estratégicos para a continuidade das atividades dos clubes, a exemplos de membros da Federação Mineira de Futebol, funcionários da Prefeitura ou políticos locais. Sendo convidados para ocupar o posto de patrono, ou sendo homenageados durante a celebração, reafirmavam sua proximidade da agremiação e seus compromissos de atuar em seu favor.

Os festivais eram, também, ocasião de se reforçar rivalidades ou parcerias entre os clubes, uma vez que havia acordo tácito de que os convites se estenderiam principalmente entre as agremiações da mesma região. No caso de times que já ocupassem o campo, eram instados a escolher um adversário para a partida componente da programação. Nos demais casos, a conduta acontecia como retribuição ou na expectativa de uma reciprocidade de entidade dos bairros vizinhos. Para torcedores, era oportunidade de assistir às várias equipes do lugar jogar ao longo do dia. 

Fins de ano e feriados, principalmente o carnaval, eram momentos de realização de encontros especiais. Nesses momentos, as equipes que atuavam durante todo o ano se desfaziam, veteranos iam a campo junto de jovens atletas, em ocasiões de distensão. Sendo assim, a realização de jogos festivos, conjugados com confraternizações, com oferta de comida e bebidas eram recorrentes no universo varzeano local.

Nessas disputas desinteressadas times eram formados a partir de oposições como solteiros x casados, Atlético x Cruzeiro e brancos x pretos. Tensões clubistas e raciais afloravam nesses encontros de fim de ano. No carnaval, em alguns campos, os jogos em que homens se vestiam como mulheres também podiam ser vistos.

Por fim, podem ser identificados torneios avulsos, organizados pelas próprias agremiações ou por ligas de bairro independentes. A ocupação de todas as datas livres apenas por amistosos poderia ser algo pouco interessante, senão tedioso. Nessa medida, não raro, os dirigentes varzeanos engajavam-se na promoção de torneios avulsos que fossem capazes de ocupar as associações não filiadas ou as equipes federadas sem jogos programados. Essas competições independentes articulavam formas de disputa do universo oficial e modos de organização mais alinhados às lógicas próprias do futebol amador.

A realização de quadrangulares era muito comum. Não raro, essas competições de curta duração eram disputadas em homenagem a alguém, repetindo o mecanismo de reciprocidade identificado nos festivais. Políticos locais e integrantes das entidades diretivas eram alvos preferenciais para darem nome a esses torneios de tiro curto.

Assim, em paralelo a um circuito competitivo que tendia a apresentar formas organizativas mais próximas do futebol profissional, outras vivências do esporte, as quais se conectavam às experiências e às visões de mundo dos envolvidos, foram observadas em Belo Horizonte. Isso articulou uma cultura esportiva própria, de caráter popular, que diferenciava esse universo daquele protagonizado pelos grandes clubes, de projeção nacional.

Tal modo de organização dialogava com as transformações por que Belo Horizonte passava, suas formas tradicionais eram influenciadas pela modernização da cidade, mas eram igualmente reiteradas pela chegada de novos contingentes populacionais frutos do êxodo rural. Esses novos moradores, que tinham contato com o futebol em suas localidades, articulavam esse referencial cultural com a construção de sociabilidades e vínculos na metrópole em formação.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Raphael Rajão

Autor de A bola, as ruas alinhadas e uma poeira infernal: os primeiros anos do futebol em Belo Horizonte (1904-1921). Graduado e mestre em História pela UFMG. Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Escola de Ciências Sociais FGV CPDOC. Atualmente pesquisa o futebol de várzea em Belo Horizonte.

Como citar

RIBEIRO, Raphael Rajão. Ainda sobre a cultura esportiva popular. Ludopédio, São Paulo, v. 125, n. 19, 2019.
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