Numa das andanças que fiz pelos sebos de livro da cidade de Campinas em busca de referências para minhas pesquisas, encontrei uma obra que me chamou atenção. Trata-se de “Ginástica para a mulher moderna”, de Nair G. Fischer. Sem ano de publicação, num português ainda antigo, o livro me despertou curiosidade pela organização interna, pelos desenhos muito bem definidos e pela linguagem bastante erudita. Resolvi colocá-lo no conjunto de outras obras que havia garimpado, pois talvez pudesse servir para alguma finalidade futura.
No entanto, qual não foi minha surpresa quando alguns meses depois iniciei sua leitura. A autora defende suas ideias num português corretíssimo, é extremamente versátil nas explanações (vai da defesa da necessidade da existência de uma Educação Física enquanto área de atuação a conhecimentos médicos e bioquímicos sobre a prática esportiva) e muito hábil na descrição dos exercícios ginásticos, propostos para a “mulher moderna”. Sua obra é um verdadeiro documento histórico, que registra interesses datados, provavelmente entre os anos 1930-1950, quando a nascente área da Educação Física se institucionalizava no país.
Obviamente que a ginástica da qual Fischer se encarrega no livro não é a mesma antiga modalidade, que chegou ao Brasil por influência europeia ainda no século XIX. A ginástica em desenvolvimento no século XIX na Europa enquadra-se numa pedagogia em voga de “educação do corpo”, que mais do que em outras épocas da história do Ocidente, redefinia e modelava gestos e movimentos. Esses, por sua vez, deviam ser internalizados em comportamentos e posições, o que conformava novos códigos de civilidade em pauta[1].
Essa ginástica chega ao Brasil via “movimentos ginásticos europeus” (particularmente, o alemão, o sueco e o francês), que, cada um a seu modo e em seu tempo, influenciam a prática esportiva da modalidade e, em realidade, dão origem a desdobramentos. Mais especificamente em meados da década de 1930, tanto surgia um novo modelo de espaço destinado às práticas da ginástica (os estúdios e mais tarde as academias), quanto a própria Educação Física vivia um momento decisivo de afirmação como área de conhecimento. Penso que o livro de Fischer traz resquícios deste momento histórico, quando tece sugestões para a então ginástica que se transformava e para a mulher daquele tempo.
Além disso, nas entrelinhas de muitas defesas argumentativas da autora encontramos um contexto político maior, que respondia a um cenário internacional em formação, marcado pela ascensão de ideologias políticas de direita (nazistas e fascistas), reativação do ideário eugenista de fins do século XIX (e seus debates espúrios sobre melhoramento da raça), além do pleno vigor das instituições militares (inclusive no Brasil). Para justificar a importância da Educação Física frente a isso tudo, dispara a autora:
“Se todos os que possuíssem noções, mesmo rudimentares, de educação física, se propusessem a ensinar outros cinco, preferencialmente adolescentes, em breve seríamos uma raça mais eugênica, mais saudável – embora longe da perfeição, pois os dados coligidos pelo professor Ernani de Irajá, acusando o subdesenvolvimento de nossa gente, encontram base na subalimentação e na desvitaminização, mais do que na inércia” (p. 37, grifos meus).
Para Fischer o que está em jogo é uma educação física baseada na “ginástica” enquanto prática física como antídoto (e prevenção) contra doenças que possam afetar a “raça” brasileira. Afinal, segundo ela, “a falta de exercício prejudica a eugenia de um organismo inteiro” (p. 15). As mulheres devem praticar tal atividade para galgarem “maior elegância e graciosidade nos gestos” e não se tornarem “débeis”, “obesas” ou “raquíticas demais”.
O princípio que orienta sua “visão de mundo”, por assim dizer, é o de uma veiculação ideológica de exaltação à superioridade racial, baseada em dados de uma ciência moderna, que disponibilizava à educação física (via prática da ginástica) o melhor de seu conhecimento acumulado para o melhoramento da espécie. E, possivelmente, para ela, as mulheres seriam as responsáveis por isso – não nos esqueçamos que a naturalização da maternidade para o corpo da mulher a tornava responsável direta pelo futuro da nação.
Curiosamente, durante a leitura, me indagava quem seria essa “mulher moderna” de quem tratava Fischer? A resposta não só está nos desenhos ilustrativos de mulheres nas posições ou movimentos de ginástica, que até cabelo estilo Chanel tinham, como em afirmações do tipo: “a mulher moderna não pratica trabalhos caseiros” e seus “passeios são dados dentro de automóveis ultraconfortáveis” (p. 13). Ou ainda em trechos como: “a inércia de certas mulheres ricas, que têm empregadas até mesmo para penteá-las, é uma paralisação de energias inapropriadas, que poderiam levá-las, se utilizadas, ao aprimoramento estético do corpo” (p. 15).
Fica evidente, mesmo que não dito, que a autora escrevia para as novas mulheres que ascendiam socialmente nos então centros urbanos e industriais em formação. Mulheres (provavelmente brancas) que, com informação à disposição, poderiam encampar o ideal de modernidade defendido por Fischer. As mulheres para as quais estava defendendo a prática da ginástica deveriam ser diferentes daquelas que faziam o “golfe, tênis ou outro esporte da moda”, pois os executavam mais por pragmatismo social do que por espírito esportivo.
Os exercícios prescritos no livro pregam o trabalho corporal harmônico do corpo da mulher (inclusive quando ela defende incursões nas práticas de ioga), passando por exercícios de respiração e movimentos mais vigorosos ou de flexão, que devem se pautar pelos ideais de beleza e vitalidade. A calistenia é a base de quase todos eles. Lembremos que a calistenia foi um método que influenciou a ginástica nos locais de sua prática no Rio de Janeiro (e depois a todo o país), em grande parte do século passado.
Procurei informações sobressalentes sobre a autora, mas não as encontrei. Quem foi influenciado por esta leitura e qual impacto causou o livro no universo das “modernas mulheres”, talvez praticantes de ginástica? Dificilmente saberemos. É bem possível que Fischer tenha formação em medicina, ou, no mínimo, seja de uma família de médicos. Eles tiveram grande presença e influência no processo de institucionalização nacional da área de Educação Física e mantinham discursos sobre a prática esportiva para o melhoramento da saúde e higiene das pessoas. Tal discurso era orquestrado pela classe médica e disso decorre que a literatura disponível reconhece que a prática da ginástica tinha uma “matriz médica” subjacente à sua aplicação. Só não nas instituições escolares de fins do século XIX e início do XX, onde vigoravam práticas circenses, teatrais, e outras espetaculares. Mas essa é outra história, para ser trazida em outro momento[2].
Notas de Rodapé
[1] A obra de Carmen Lúcia Soares, Imagens da Educação no Corpo (2002) resgata esse interessante processo em detalhes (inclusive ilustrativos).
[2] Este é um achado do artigo de Victor Melo e Fábio Peres (2006), que vale ser lido.
Para conhecer mais desta história
COSTA, Marcelo G.; PERELLI, João M.; DOS SANTOS, Leonardo M. “História da Ginástica no Brasil: da concepção e influência militar aos nossos dias”. Navigator. Rio de Janeiro, v. 12, n. 23, 2016. p. 63-75.
FISCHER, Nair G. Ginástica para a Mulher Moderna. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d.
MELO, Victor; PERES, Fabio. “Relações entre ginástica e saúde no Rio de Janeiro do século XIX: reflexões a partir do caso do Colégio Abílio, 1872-1888”. História, Ciências e Saúde. Manguinhos/RJ. v. 23, n. 4, out./dez. 2016, p. 1133-1151.
SOARES, Carmen Lúcia. Imagens da Educação no Corpo. Campinas: Autores Associados, 2002.
______. Educação física: raízes europeias e Brasil. Campinas: Autores Associados, 1994.