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A Geni tinha razão: o juiz de vídeo é ladrão

Marcos Alvito 24 de dezembro de 2016

Bem que eu avisei. Na minha coluna de 21 de outubro deste ano eu me posicionei contra a utilização do Juiz de Vídeo. O artigo foi bastante comentado. Como eu previa, fui mesmo apedrejado em praça pública feito a Geni. Quase a maioria absoluta dos que se posicionaram nos comentários achavam que eu estava errado e se disseram à favor da utilização da “tecnologia na arbitragem”, como o Ludopédio colocou a questão.

Só que até agora, que nem o Monstro do Lago de Loch Ness, a tal entidade “árbitro de vídeo” vivia submersa. Todos puderam ver sua horrenda face quando da disputa do Mundial de Clubes da FIFA de 2016 vencido pelo Real Madri. Imaginem a cena. A FIFA prepara sua novidade com todo o carinho, fazendo testes por todo o mundo, em campeonatos importantes, como no Campeonato Italiano, mas somente offline. Ou seja, sem que haja contato entre o juiz de campo e os juízes de vídeo. É somente para treinar e anotar os lances onde haveria a necessidade de intervenção da “máquina”, ou melhor, dos homens que operam a “máquina”.

Sim, porque é aqui que está a primeira questão. Não há solução mágica para as disputas em torno dos lances no futebol. Porque não há, ao contrário do que se diz, um aparelho que diga se houve ou não pênalti ou impedimento. Há apenas prosaicas imagens de vídeo que são interpretadas, frisemos bem esse ponto, por árbitros de carne e osso. Que erram da mesma forma que os árbitros que correm pelos gramados. Exemplo? Tomemos os dois lances mais comentados do Mundial da FIFA. Não foram uma bela cobrança de faltas, uma tabelinha terminando em gol, um drible desmoralizante ou um chapéu. E sim dois erros clamorosos. De quem? De sua excelência, de sua majestade o “árbitro de vídeo”.

O primeiro lance ocorreu na semifinal entre o nosso querido Atlético Nacional de Medellin e o time japonês do Kashima Antlers. O jogo estava empatado em zero a zero e era bem disputado, quando aos 27′ do primeiro tempo tivemos a primeira marcação de um AV (árbitro de vídeo) da História. Completamente errada, por sinal.

O juiz, o húngaro Viktor Kassai, estava deixando o lance correr quando foi avisado pelo AV que teria havido pênalti contra o japonês Daigo do Kashima. Todo o processo durou dois intermináveis minutos, o que é muito comum no futebol americano, mas não no nosso futebol. A penalidade foi cobrada, um a zero para o Kashima, que depois fez mais dois gols e venceu o jogo, indo para a final com o Real Madri.

A International Board, órgão internacional gestor das regras usadas no futebol e entidade que deve aprovar ou não o AV, comemorou a utilização do AV pela primeira vez em seu Twitter. Só esqueceram de um detalhe, o jogador japonês estava impedido antes de sofrer o pênalti. E ainda por cima tinha dado um tranco faltoso no jogador colombiano antes de tomar a rasteira que redundou no pênalti. Ou seja, erro clamoroso do AV gerando uma vantagem indevida para o Kashima e que provavelmente foi decisiva. Até o normalmente contido Arnaldo César Coelho chegou a chamar a FIFA de “irresponsável” por introduzir o AV em uma competição tão importante. Ele foi incisivo no seu comentário:

“A ideia da Fifa é boa, mas aproveitaram o Natal e deram um brinquedo para uma criança brincar, em pleno Mundial de Clubes. O Atlético Nacional foi muito prejudicado”

A FIFA não resistiu ao marketing, não é mesmo? Apresentar sua “grande novidade” para o público do mundo todo. Resultado: mico mundial.

O árbitro de vídeo. Foto: CBF.

Também pelo Twitter a equipe do Atlético Nacional questionou:

“Impedimento claro na jogada do pênalti. Deveriam revisar de novo a jogada e anular o gol. Agora, é assim que funciona o futebol, não é?”

Pois é. Agora os defensores do AV percebem que os erros irão ocorrer e, da mesma forma que os erros dos árbitros de campo, uma vez tomada a decisão este erro se tornará parte definitiva da partida. Sem falar que o erro acabou favorecendo o time da casa, ou seja, nada mais tradicional…

O segundo erro foi menos dramático. Esteve mais para o ridículo. Na outra semifinal do Mundial de Clubes, o Real Madri enfrentou o América do México. O time espanhol controlou as ações, sem dúvida, mas até os 48′ do segundo tempo ganhava apenas de um a zero. Ou seja, embora improvável era ainda possível que o time mexicano marcasse e levasse o jogo para a prorrogação. Mas esta relativa ansiedade terminou com o gol de Cristiano Ronaldo no finalzinho do jogo.

Ou melhor, terminou e não terminou. O português marcou, deu pulinho, fez pose para as câmeras e esperou o abraço dos colegas. Logo depois, todavia, alertado pelo AV, o árbitro terrenal anula o gol. Já imaginaram, a torcida toda comemorando, depois o gol é anulado. Claro, isso já aconteceu muito no futebol. Mas normalmente o atacante pensa ser gol e o juiz anula. Aqui não. O juiz iria dar o gol. Mas depois voltou atrás por causa do AV. E o que é pior, depois voltou atrás de novo e deu o gol novamente. Não houve esclarecimento por parte da FIFA: o AV voltou atrás e recomendou marcar o gol? Ou o árbitro de campo passou por cima e deu o gol? No caso, o gol era importante, mas não tanto, pois parecia estar tudo decidido para o Real. Mas já imaginaram uma confusão dessas num jogo realmente decisivo, estádio cheio em um Celtic x Rangers ou Flamengo x Vasco? O juiz dando o gol, anulando e depois dando o gol de novo?

Deixemos de lado o ridículo. Deixemos de lado a prova de que o AV é uma falsa solução que só vai criar novos e velhos problemas. Se o AV não funciona depois de muitos testes, numa das principais competições da FIFA, já imaginaram o que vai ser aqui abaixo do Equador? Pois bem, deixemos de lado tudo isso. Basta repetir as palavras de Luka Modric, o craque sérvio do Real Madri:

“Não sei o que dizer. É novo e lento. Não me agrada. Cria muita confusão. Espero que não continue porque para mim isso não é futebol”

É por isso que eu digo, mesmo sabendo que vão chover pedras: o juiz de vídeo também é ladrão.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcos Alvito

Professor universitário alforriado. Escritor aprendiz. Observador de pássaros principiante. Apaixonado por literatura e futebol. Tenho livros sobre Grécia antiga, favela, cidadania, samba e até sobre futebol: A Rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra. O meu café é sem açúcar, por favor.

Como citar

ALVITO, Marcos. A Geni tinha razão: o juiz de vídeo é ladrão. Ludopédio, São Paulo, v. 90, n. 12, 2016.
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