120.20

A Copa, muitas mulheres, outro futebol

Wagner Xavier de Camargo 16 de junho de 2019

Agora em junho, estamos em plena Copa que o mundo chama de “futebol feminino”. Em realidade, a mídia e a sociedade a intitulam “Copa do Mundo de Futebol Feminino” quando deveriam chamar de “futebol de mulheres”, pois são mulheres em campo, independente se são “mais ou menos” femininas jogando. Feminilidade e masculinidade são juízos de valor convencionados socialmente e não poderiam pesar na consideração de uma expressão esportiva. O esporte/futebol em si não é mais ou menos “feminino”, como também não é mais ou menos “masculino”. Esporte é esporte e não deveria ter atributo de gênero. Feminino/masculino são convenções generificadas sobre corpos, que, muitas vezes, não querem nelas se enquadrar.

Pois bem, exposto este equívoco, a “Copa do Mundo de Futebol Feminino” está em sua oitava edição, sendo realizada na França. Em que pese a existência do evento num calendário esportivo mais amplo, um maior interesse de jovens mulheres atletas ao redor do mundo, ainda os meios de comunicação parecem não levar tão a sério a competição e mesmo a TV aberta (ao menos no Brasil) deixa ainda desejar, transmitindo pouco os jogos na íntegra. Em 2019, é a primeira vez que uma das importantes emissoras nacionais está televisionando o campeonato.

Importante ser a França o local em que tal Copa acontece. País que sempre arregimentou fortes movimentos contestatórios (feminista e homossexual), que teve como pauta a luta pelos direitos humanos e foi berço de tantas revoluções, pode ser que seja o marco divisor de águas para uma potencial guinada nas questões de gênero e sexualidade no futebol de mulheres. E o start desse processo poderia ser o movimento GoEqual, que reivindica igualdade de gênero nos campos de futebol – a própria jogadora Marta o apoiou quando mostrou seu símbolo na chuteira que usava, no jogo contra a Austrália. A partir desta competição, e com maior apelo e divulgação (inclusive transmissão), talvez o “futebol feminino” se repense, se autocritique e se transforme em outra manifestação esportiva e não seja mais esta a que se assiste.

Tamires driblando entre as pernas em jogada que resultou no segundo gol do Brasil contra a Austrália, na Copa do Mundo de 2019. Foto: Rener Pinheiro/MoWA Press.

Talvez a partir de tal transformação, a característica da maternidade passe a ser um mero detalhe e não motivo de admiração. “Tamires é a única mãe entre as 23 jogadoras brasileiras na Copa”, diz uma reportagem[1]. Já faz tempo que o movimento feminista critica a “naturalização” e a idealização da maternidade para mulheres. Além da ideia de “benção” ou “dádiva”, pois se coloca que o corpo da mulher “foi feito para gerar filhos” por um desígnio divino, há o argumento de que ela nunca poderá ser “tão bem sucedida como os homens” porque engravida, menstrua, se enfraquece e “deve” cuidar da prole. Os debates críticos, os contraceptivos e, mais recentemente, a tecnologia livraram o corpo da mulher destes posicionamentos machistas. Ela não só pode ser mãe e atleta como há vários exemplos de sucesso nesta situação. Atualmente, Tamires é um deles.

Pensando aqui no caso do Brasil e da seleção nacional de futebolistas mulheres, as coisas não são nada boas em perspectiva. Do ponto de vista interno, a crise política e o recrudescimento de valores conservadores não favorecem a prática de esportes por mulheres, muito menos o futebol, que sofre em seu mais básico desenvolvimento desde que foi desimpedido de ser praticado por elas, oficialmente em 1979. Uma geração de jogadoras medalhistas em Jogos Olímpicos e mesmo vice-campeãs em Copa pode estar chegando ao término. Marta, Cristiane e Formiga ainda estão na ativa, são as mais experientes do grupo, porém talvez participem pela última vez. Como ainda a competição na França está se desenrolando na fase de grupos é difícil predizer o que acontecerá com a seleção nacional. Um ponto a ser comentado é o fato de que o desenvolvimento de ligas de futebol de mulheres em países como França, Inglaterra e Espanha aumentou a competitividade na modalidade e, certamente, tem apresentado níveis de performance esportiva mais elevados em comparação a outros tempos. Nações como Estados Unidos e Alemanha, que sempre dominaram o cenário, sentem a pressão de outras equipes. A Copa da França pode ser a morte de um futebol para o renascimento de outro, noutros termos, potencialmente mais independente do próprio futebol hegemônico.

E assim, quiçá, a “Copa do Mundo de Futebol de Mulheres” estará por acontecer! Um futebol praticado por mulheres, que sejam corpos de mulheres cisgênero ou transgêneros[2], precisa achar sua expressão, que não deve ser à sombra do futebol praticado por homens, muito menos do futebol profissional jogado pelos mesmos. Defendo que se busque uma desreferencialização em relação ao jogo dos homens. Se a mídia tem dificuldade em entender isso (talvez por não querer, não ter interesse ou não compreender tal peculiaridade), imagine as pessoas comuns como eu e você (?), muitas vezes cooptadas por discursos superficiais e de senso comum.

Pela primeira vez, seleção brasileira de futebolistas mulheres tem uniforme exclusivo. Foto: Divulgação/Nike.

Digo isso porque penso que o futebol praticados por mulheres é (ou deveria ser) outro futebol: talvez outra modalidade, com outro jogo, outras regras, outro uniforme (como se vê pela primeira vez o desta seleção brasileira), novas e outras especificidades, desvinculados, definitivamente, do fenômeno “futebol” que, culturalmente, aprendemos a conhecer. Enquanto isso não acontecer, infelizmente, afirmações absurdas se repetirão, como as que ouvi nestes últimos dias: “falta muito para o futebol feminino chegar lá…”, “elas não jogam como os caras”, “mulheres nunca vão se desenvolver neste esporte”. Não vão “chegar lá” e nem vão jogar “como os homens”, pois essas são prerrogativas ilusórias, idealizadas, de uma comparação desigual e descabida. Com tais frases, mantém-se a subordinação delas em relação a eles e minimiza-se a importância de suas expressões esportivas. Na história do esporte, as mulheres não tiveram o mesmo tempo de desenvolvimento esportivo dentro da modalidade que os homens.

Que o futebol seja descaracterizado dele mesmo. Que as mulheres o reinvente segundo outras e novas lógicas, distintas e talvez mais interessantes. Que mais mulheres trans ou cis se agreguem e formem uma força única. Que outro jogo apareça. Quem sabe assim em breve teremos a primeira Copa do Mundo de Futebol praticado por Mulheres.

 

Notas de rodapé

[1] Leia mais sobre isso na visão de Breiller Pires, “Ser mãe ou jogar futebol, o dilema das mulheres que vivem da bola”. El Pais (online), 13 jun. 2019.

[2] Corpos que concordam ou não com o sistema sexo/gênero a eles designado no nascimento.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. A Copa, muitas mulheres, outro futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 120, n. 20, 2019.
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