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Racismo e homofobia não fazem parte do jogo

Paulo Nascimento 17 de março de 2014

Na primeira madrugada de segunda pra terça de 2014, recebi de um amigão o link para uma reportagem sobre um jogo da NBA no qual teria ocorrido “uma cena polêmica”, como o autor do texto definiu a situação. O jogo era entre o New York Knicks e o Dallas Mavericks. A “cena polêmica”: em um lance livre a favor do Mavericks, J. R. Smith, jogador do Knicks, à postos para o rebote, desamarrou o cadarço do tênis de Shawm Marion, um dos jogadores adversários. A informação final do texto, de que os Knicks venceram o jogo (92 a 80), dava margem a interpretações de que esse lance teria sido decisivo no resultado final. Os comentários logo abaixo da reportagem (que, como insisto em dizer nas rodas que frequento, são a parte mais reveladora do quão deprimente a humanidade se revela através da internet) foram pródigos em afirmar que aquele gesto era fruto de uma postura pouco respeitosa de Smith. Este “pouco respeitosa”, no caslo de dúvidas, é um eufemismo meu que se pretende engraçado, porque os comentários foram um sextilhão mais ofensivos do que isso – e podemos imaginar o quanto sem ler a reportagem.

Mas a discussão que quero alimentar aqui é sobre o que vale e o que não vale no jogo e no esporte. Ao acompanhar as aulas da professora Gabriela Tymowski (referência nas discussões sobre ética no esporte) em um seminário de estudos há pouco menos de dois anos, tive contato pela primeira vez com o termo gamesmanship. Trata-se de práticas possíveis de serem feitas por um atleta, no contexto da disputa, com vistas a desestabilizar o adversário, de modo que o atleta que o fizer não seja punido, simplesmente por aquela prática não ser considerada uma infração. O exemplo que a professora Gabriela trouxe à baila foi de um jogo de futebol feminino em que, a cada vez que a goleira de um dos times tinha a posse de bola, a atacante adversária se punha à sua frente e começava ostensivamente a contar o tempo em segundos. Podemos especular que a intenção da atacante era provavelmente fazer com que a goleira se perdesse no tempo máximo com a bola em suas mãos. O tempo excedido geraria uma punição a quem cometeu a infração (falta) e um benefício ao outro time (cobrança de tiro livre direto). Em outras palavras, o gamesmanship é um flerte com o limite da contravenção à regra, cujo êxito reside justamente na eficácia em não transgredir qualquer conduta a ponto de, por exemplo, o jogador ser advertido com um cartão amarelo ou com uma cobrança de falta a favor do adversário. O recurso a esta prática, que pode ser uma ofensa (como exemplo temos a que foi feita por Materazzi contra Zidane na final da Copa do Mundo de 2006) está distante dos predicados associados ao fair-play. E não pode ser punido, por não ser considerado uma infração tangível, prevista pela regra – daí sua eficácia.

Crianças seguram a bandeira do Fair Play antes do início de uma partida pela Copa das Confederações. Foto: Laurence Griffiths – Getty Images.

Penso que o que Smith e Materazzi protagonizaram pode ser lido como uma prática de gamesmanship. E penso também que são vários os exemplos aqui no Brasil de como, a depender de quem foi ofendido e por qual motivo, a ofensa pode ser tida indevidamente como algo menor, inevitável, que faz parte do jogo.

Um destes vários exemplos pode ser recuperado no recente jogo válido pelo Campeonato Paulista em que o Santos venceu o Mogi-Mirim por incontestáveis 5 a 1. Um dos gols do Peixe – aliás, um golaço de voleio – foi marcado por Arouca. Após o jogo, Arouca afirmou que foi exposto a ofensas racistas por torcedores do Mogi-Mirim. Em uma entrevista poucos dias após o ocorrido, falou de autoridade, punição e rigor: “Lamentável. A gente pede que as autoridades possam punir essas pessoas com rigor. Enquanto não houver punições severas, essas atitudes vão ser mais comuns ainda, não só no meio do futebol”.

Arouca. Foto: Ricardo Saibun – Divulgação Santos FC.

Quais os posicionamentos possíveis diante de tal violência? O técnico do Santos, Osvaldo de Oliveira, quando convidado a se pronunciar, disse: “A minha resposta pra isso? Silêncio. Não fazer mais nada”. Pois enquanto alguns se calam, outros continuam sujeitos à exposição preconceituosa de torcedores que consideram sim ser plausível ofender um jogador adversário chamando-o de macaco ou bicha; como se ser negro ou homossexual fosse motivo para execrar um adversário – isso só para ficar nas duas ofensas que me parecem ser as mais recorrentes nos estádios Brasil afora. Em relação ao racismo, finalmente começam a aparecer denúncias no sentido de denunciar esta prática e desconstruir paulatinamente o delírio sobre a inexistência de racismo no Brasil. Delírio este que se sustenta pelo frágil argumento de ser o futebol um espaço em que tantos negros ganham projeção, talvez como em nenhum outro. No caso da homofobia o cenário é ainda mais complicado, já que ela parece se sustentar graças a um cenário que mistura falta de compromisso dos jogadores com a discussão (sejam ou não gays) e, mais uma vez, com o silêncio de técnicos, dirigentes e torcedores que provavelmente não vêem grandes problemas em alguém ser tachado de bicha num jogo, desde que isso desestabilize o adversário – ou seja, mero regozijo babaca de quem se sente atraído pelo futebol por ver nele a possibilidade de soltar pelo mundo afora o hooligan que tem dentro de si. Talvez por ter perdido o bonde do processo civilizatório e querer, a todo custo, manter cristalizada uma sociedade extremamente violenta para com gays e negros.

Durante a Copa das Confederações a FIFA reiterou a sua campanha contra o racismo. Foto: Claudio Villa – Getty Images.

Racismo e homofobia não fazem parte do jogo. São ofensas que se apropriam indevidamente das filiações étnico/ raciais e de orientação sexual de alguns para gerar humilhação. Isso tudo sob o pretexto do “faz parte do jogo”. Se ainda é possível pensar que algo de bom pode surgir desta famigerada Copa do Mundo no Brasil, talvez seja justamente pensar que esse evento pode promover a revisão dos preconceitos mais tacanhos da sociedade brasileira. Isso não se realizará sem um comprometimento real de torcedores, jogadores e demais envolvidos com o fenômeno do futebol, assim como daqueles que o dirige. Como a postura dos dirigentes do futebol brasileiro é conhecida até pelo reino mineral como distante das demandas que não as deles, a responsabilidade de pressão dos demais grupos sociais, gostem ou não do futebol, aumenta. É hora de se posicionar entre os silenciosos ou entre os dispostos a mudar. Vamos ao jogo!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Paulo Nascimento

Professor de História.

Como citar

NASCIMENTO, Paulo. Racismo e homofobia não fazem parte do jogo. Ludopédio, São Paulo, v. 57, n. 5, 2014.
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