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Morte a bordo: futebol e acidentes aéreos

Wagner Xavier de Camargo 12 de novembro de 2017

Há um ano, em fins de novembro de 2016, um avião que transladava a equipe Chapecoense para Medelín, na Colômbia, caiu a poucos quilômetros da cidade, numa região da Cordilheira dos Andes. Foram resgatados seis integrantes gravemente feridos e encontrados 71 mortos. A equipe faria o primeiro jogo da final da Copa Sul-Americana de Futebol masculino contra o Atlético Nacional. De um ponto de vista mais geral, a catástrofe causou extrema comoção no Brasil e na Colômbia e entrou para as estatísticas relacionadas a acidentes aéreos no mundo esportivo. Do ponto de vista pessoal, fiquei impressionado e decidi realizar uma pequena pesquisa sobre mortes em acidentes aéreos envolvendo equipes de futebol.

Em geral as pessoas não gostam de falar de morte. Tratar dela então no âmbito do esporte, um fenômeno associado ao prazer físico e psíquico, é quase uma blasfêmia. Morte, no geral e para o senso comum, não está vinculada a nada de bom; pelo contrário: conecta-se a algo obscuro, indescritível, doloroso, revoltante. Porém, mortes acontecem também no esporte. Por causas naturais, estresses de treinamento, falha de equipamentos e, principalmente, acidentes. Algumas situações catastróficas poderiam ter sido evitadas, como essa da queda do avião LaMia (transportadora da equipe Chapecoense), que não abasteceu os tanques mediante às necessidades exigidas pela regulamentação internacional da aviação, ou mesmo a morte de Ayrton Senna, que bateu seu carro em alta velocidade na curva Tamburello, no circuito de Ímola, Itália, em 1994. Contudo, outras fatalidades simplesmente acontecem: quem não se lembra dos olhos esbugalhados de Marc Foé, jogador camaronense que, na Copa das Confederações de Futebol em 2003, sofreu um ataque cardíaco fulminante no gramado e foi televisionado por todo o planeta?

(Chapecó - SC 03/12/2016) Presidente Michel Temer durante Cerimônia em Homenagem às Vítimas do Acidente com Avião da Chapecoense Foto: Beto Barata/PR
Velório dos mortos no acidente com o avião da Chapecoense, na arena Condá, em Chapecó. Foto: Beto Barata/PR.

Especialmente no futebol, o acidente aéreo com a Chapecoense não foi o primeiro da história. Grandes desastres aeronáuticos marcaram a história da modalidade desde a metade do século XX. Para mim, um então adolescente vidrado em esportes, o mais marcante dos acidentes ocorreu nos idos de 1993, quando a seleção de Zâmbia viajava para um jogo das eliminatórias da Copa do Mundo de Futebol masculino do ano seguinte e seu avião caiu antes de chegar ao Senegal, em Dakar. A catástrofe, primeiro dado de realidade para um jovem que nunca tinha ouvido falar em morte no mundo esportivo, matara todas as 30 pessoas a bordo, inclusive jogadores e comissão técnica. Lembro-me de que, depois de uma performance cativante nos Jogos Olímpicos de Seul-88, a seleção de Zâmbia tentava sua primeira classificação para uma Copa do Mundo.

Até hoje nos registros da aviação mundial Europa e América do Sul se alternam como regiões nas quais ocorreu a maior quantidade de acidentes aéreos relacionados a equipes de futebol. O primeiro deles data de fins dos anos 1940, quando o avião do time de Torino, numa viagem de retorno de Portugal onde participara de um amistoso contra o Benfica, chocou-se contra uma basílica em Turim e caiu em meio a uma tempestade. Os 18 jogadores, a comissão técnica, jornalistas e tripulantes todos morreram no acidente. O Torino estava na melhor em sua fase há cinco anos consecutivos no campeonato italiano.

Nem dez anos após o ocorrido, outro acidente envolvendo um clube de futebol marcaria a vida de torcedores e de uma nação europeia, no caso, a inglesa. Tendo se credenciado pela segunda vez para participar da Copa dos Campeões da UEFA devido à excelente campanha, o Manchester United fretou um avião para Belgrado (ainda Iugoslávia) a fim de jogar com o Estrela Vermelha. O empate de 3 a 3 lhe concedeu um lugar nas semifinais da competição, mas no dia da viagem de retorno o avião contratado precisou fazer escala em Munique para reabastecimento, na então Alemanha Ocidental. Após três tentativas, a aeronave decolou com certa dificuldade e, em seguida, desabou sobre o cercado do aeroporto e uma casa abandonada. Na ocasião 44 pessoas estavam a bordo e, dessas, 23 morreram. Entre os passageiros havia oito jogadores do Manchester United, os famosos “Busby Babies” ou queridinhos do técnico Matt Busby, em referência aos jogadores talentosos e que estavam no auge de seus desenvolvimentos técnico-táticos. Por sua vez, o episódio passou para a história como o “Munich Air Disaster” (Desastre de Munique) e sempre é lembrado pela equipe inglesa.

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“Munich Air Disaster” (1958). Museu Nacional do Futebol, em Manchester. Foto: David in Lisburn (CC BY 2.0).
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Recorte de jornal sobre o “Desastre de Munique” (1958). Fonte: Photo credit: azizul hadi (CC BY-NC 2.0).

Cerca de dois anos mais tarde, alguns jovens jogadores dinamarqueses de futebol tinham a chance de impressionar olheiros para as poucas vagas finais na equipe nacional que participaria dos Jogos Olímpicos de Roma-1960. Assim, a Associação Dinamarquesa de Futebol fretou um pequeno avião para levá-los até o local da seletiva. Alguns minutos após a decolagem, o piloto perdeu o controle e a aeronave caiu nos arredores de Copenhague, matando oito jogadores a bordo. De sobreviventes somente o comandante, que teve a perna amputada logo depois do resgate.

O último acidente relacionado à Europa, e o que causou mais mortes, ocorreu em 07 de junho de 1989. Um grupo de jogadores profissionais atuantes na Holanda, descendentes de surinameses, formaram uma equipe de futebol – a Colorful 11 – para participar num jogo amistoso no Suriname. Seria a chance de fazer uma ação social que ajudaria na autoestima jovens filhos/as de imigrantes surinameses, que viviam nas periferias de Amsterdam e se sentiam socialmente excluídos/as. Além disso, jogar em Suriname contra o SV Robinhood, o campeão da Copa Nacional do Suriname, seria uma situação espetacular para todos os envolvidos. Porém, o jogo nunca aconteceu: o avião que trazia a maior parte do grupo e que vinha desde Amsterdam caiu inesperadamente durante a aproximação a Paramaribo. Dos 176 passageiros a bordo, apenas 11 deles sobreviveram (incluindo três jogadores). O acidente ficou conhecido como o mais mortal relacionado a equipes esportivas em toda a história da aviação contemporânea.

Três acidentes marcaram a história do esporte bretão na América do Sul. O primeiro deles reapareceu em páginas jornalísticas em 2015, quando outros resquícios do avião foram encontrados por alpinistas em meio à Cordilheira dos Andes. Trata-se do caso envolvendo o pequeno time chileno Green Cross, originário da cidade de Santiago e fundado em 1916. O acidente, de fato, ocorreu em abril de 1961, quando a equipe de futebol voltava do jogo contra o também chileno Club Deportivo Provincial Osorno, numa competição sul-americana. Na catástrofe morreram 24 pessoas, sendo dentre elas oito jogadores chilenos, o técnico e o fisioterapeuta da equipe.

O segundo acidente aconteceu em 1969 e foi o mais grave de todos relacionados a equipes de futebol da América do Sul pelo número de mortos: 69 passageiros e os nove tripulantes, estando nesse montante 16 jogadores e três staffs técnicos do Club The Strongest, uma das mais antigas agremiações futebolísticas bolivianas, fundada em 1908. Em setembro daquele ano, a aeronave da equipe simplesmente desapareceu dos radares e foi encontrada totalmente destroçada horas depois em La Concha, uma área montanhosa a cerca de 100 km de La Paz.

O terceiro e último diz respeito à equipe do Alianza Lima, um clube de futebol peruano, fundado em meados de 1900. Em retorno para Lima após jogo contra o Deportivo (de Pucallpa), em dezembro de 1987, o avião de propriedade da marinha peruana caiu no Oceano Pacífico, já em aproximação para o aeroporto Jorge Chávez. Todos abordo morreram, dos jogadores e comissão técnica aos líderes de torcida que acompanhavam o grupo. À semelhança do caso dos jogadores dinamarqueses em 1960, nesse acidente também apenas o piloto sobreviveu à queda.

O único acidente aeronáutico envolvendo uma equipe de futebol da então União Soviética, ainda nos anos de chumbo da Guerra Fria, ocorreu em agosto de 1979. O irônico da história é que foi um choque entre dois aviões russos, mesmo modelo (Tupolev Tu-134), da mesma empresa, a Aeroflot. O avião fretado da equipe uzbeque que levava o FC Pakhtakor Tashkent para enfrentar o Dínamo Minsk (em Minsk, Bielorrússia), chocou-se com o outro avião, em rota convencional. Do acidente, todas as 178 pessoas morreram, e dentre elas os 14 jogadores e o grupo técnico uzbeque.

Em tempos de acidentes aeronáuticos até no mundo futebolístico atesta-se solidariedade, mesmo entre equipes rivais. Vimos isso no caso recente da Chapecoense, de Santa Catarina, para a qual distintos clubes nacionais se uniram de modo a emprestar jogadores após o ocorrido. Mas os times têm diferentes histórias relativas às suas tragédias. O Torino, que sofreu o acidente em 1949, perdeu todo o grupo (que era base da seleção italiana da época), até voltou a ter alguma expressão nos anos 1970, porém nunca mais obteve o mesmo sucesso; o Manchester United, que perdeu parte do time campeão inglês em 1958, logrou conquistar um título apenas quatro anos depois do acidente; ao contrário de outros exemplos, o The Strongest conseguiu importantes conquistas logo na primeira temporada após o acidente e, em 1970, acabou levando o Campeonato da Liga de La Paz, repetindo o feito no ano subsequente.

Pois penso que a indignação geral das pessoas com respeito a tais catástrofes baseia-se num sentimento de “injustiça” do destino (ou de Deus, para alguns) e que, por conseguinte, recai sobre o fato exclusivo da morte. Mas a morte, como tudo que nos cerca e atinge, faz parte da vida. Vive-se, morre-se. O que talvez nesse caso dos desastres aéreos cause mais indignação, e isso é sim digno de nota, são as mortes trágicas e sem sentido, particularmente porque foram produtos de erros humanos, que são incontestavelmente injustificáveis em tempos de alta tecnologia.

 

PS1: Agradeço a Luan Lucena Alves, um aficionado pelo mundo aeronáutico, as longas conversas que me estimularam a buscar informações para este texto.

PS2: Não exatamente sobre o assunto tratado aqui, mas para quem tiver interesse recomendo dois bons livros: Caixa Preta (de Ivan Santana) e O Rastro da Bruxa (de Carlos Germano da Silva).

PS3: Sobre acidentes aéreos envolvendo os esportes, encontrei referências esparsas e incompletas, porém nenhum livro que trate diretamente do assunto. Fica, assim, a dica para uma agenda de pesquisa.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Morte a bordo: futebol e acidentes aéreos. Ludopédio, São Paulo, v. 101, n. 12, 2017.
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