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Imperialismos Futebolísticos

Quando morava em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, eu tinha muita simpatia pelo time local, o Aimoré. Antes de sair de lá, procurei uma camiseta do Aimoré para comprar numa loja de esportes local, mas em vão. A loja apresentava várias versões das camisas oficiais do Barcelona e do Manchester United, do Flamengo, do Corinthians, do Grêmio e do Inter, é claro, mas em pleno centro de São Leopoldo não havia nada do Aimoré!

Escudo do Clube Esportivo Aimoré
Escudo do Clube Esportivo Aimoré

Fiquei pensando na dificuldade de ser torcedor de um time do interior. Além de seu time não jogar por metade do ano, por falta de competições, as finanças são invariavelmente deficitárias, e os custos com a manutenção do estádio e instalações crescem sem cessar. Caso um dia o destino permita que se monte uma equipe bem entrosada e razoavelmente competitiva, os grandes clubes da capital comprarão facilmente os melhores jogadores – ou o técnico, se for ele o responsável pelo sucesso. E o pobre clube do interior voltará à estaca zero, sem dinheiro – previamente consumido pelas dívidas – e sem os jogadores. Trata-se de um círculo vicioso de imperialismo futebolístico, que ocorre em vários níveis: os clubes do interior são “colonizados” pelos clubes da capital. Os clubes das capitais de estados periféricos, por sua vez, são colonizados pelos clubes das capitais dos estados centrais. Os principais times do Brasil, por sua vez, são colonizados por equipes das grandes ligas europeias. Não estamos sós: também os clubes da Argentina, da Colômbia, do Uruguai, do México e de muitos países africanos são colonizados pelas ligas europeias. De modo análogo à colonização propriamente dita, dos séculos XVI a XX, os colonizadores vêm e contra qualquer resistência levam para seus países nossos melhores recursos – açúcar, ouro, petróleo ou craques.

É fácil argumentar que os próprios jogadores e clubes desejam isso, que a liga europeia é uma vitrine, a Hollywood do futebol, e que a venda de um atleta a um clube europeu serve para cobrir os custos e as dívidas dos clubes brasileiros. O que esta suposta obviedade oculta é a naturalização de um sistema internacional de produção, circulação e dispensa de jogadores, uma verdadeira máquina de moer gente.

Como em muitos campos de atividade, as trajetórias exemplares de sucesso são raras, praticamente uma exceção. Mas são apresentadas como se fossem a regra, exemplo vivo a animar os sonhos de uma multidão de meninos que jamais serão profissionais do futebol.

Outro ponto a destacar é que, como torcedores, nos sentimos vítimas da colonização pelas ligas europeias, mas nunca algozes ao fazer o mesmo com as pequenas equipes do interior do Brasil. A soberba e o desprezo com que estas equipes – e seus jogadores e torcedores – são tratados pelos adversários “grandes” só não é maior do que o risco que implica perder para um time pequeno. A torcida do Palmeiras deve lembrar da zoeira que sofreu quando o grande time paulista foi eliminado pelo Asa de Arapiraca, do Alagoas, na primeira fase da Copa do Brasil, em 2002. A do Corinthians deve lembrar quando foi eliminada pelo Tolima da Colômbia na pré-Libertadores de 2011. Ou meus companheiros de sofrimento pelo Inter, quando perdeu para o Mazembe, do Congo, no Mundial Interclubes de 2010. Em todos estes casos, o vexame é proveniente de perder para um adversário considerado “inferior”. Nesta atribuição tácita de uma inferioridade a priori ao oponente (financeira, técnica, tática, midiática, nacional, regional, etc.) reside a soberba e a atitude imperial futebolísticas.

Este padrão é repetido dentro e fora de nosso país. As equipes europeias são valorizadas, admiradas e respeitadas, enquanto as equipes sul-americanas e africanas são desprezadas e ironizadas, numa versão viralatas de geopolítica futebolística, que reproduz lógicas, éticas e preconceitos que vão muito além de um campo de futebol.

Vamos pensar um pouco no futebol brasileiro: apesar de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro serem muito importantes e populosas, seria um equívoco dizer que somente elas e seus habitantes fazem parte do Brasil. Lugares como Itaquaquecetuba (SP) ou Tenente Portela (RS) jamais poderiam competir com essas grandes metrópoles em termos de poder, dinheiro ou influência. Entretanto, seria um grande equívoco desconsiderar o fato de que a maioria absoluta de municípios do Brasil são muito mais parecidos com Tenente Portela do que com São Paulo. De modo análogo, dos 662 clubes profissionais em atividade no país, somente 128 participam de alguma das 4 divisões nacionais. Na prestigiada série A, somente competem 20 equipes a cada ano. Ou seja, existe uma absoluta maioria dos clubes de futebol profissional do Brasil que é ignorada pelos próprios torcedores brasileiros.

Isso não significa que, por não disputar grandes títulos, um clube de cidade do interior não possa ter um conjunto de torcedores fiéis, para quem o clube representa sua cidade, seu “pedaço”, seu lugar no mundo. Como exemplo, cito um trecho da entrevista de um torcedor do Aimoré/RS para o Projeto Torcedores:

Torcer para um clube do interior é uma demência. Se o clube ganhar que bom, eu adoraria que o Aimoré fosse campeão mundial e tudo mais, mas do clube existir e o que ele representa, eu acho, vem um sentimento de identidade (…). O Aimoré representa isso, tu te sente representado, tu sente uma coisa que é tua, pertence a ti e sobretudo, pegando o caso de São Leopoldo, a gente tem poucas coisas que são nossas assim, e o Aimoré é uma delas. É amor mesmo, enfim. (Natan, estudante, São Leopoldo/RS)

Outro ponto importante da geografia futebolística no Brasil é a colonização de Estados periféricos pela torcida a clubes dos grandes centros. São notáveis neste sentido os casos de Manaus e Cuiabá. Apesar de serem Estados economicamente importantes e de existirem várias equipes locais, uma série de circunstâncias impede o desenvolvimento dessas equipes, de modo que, em grande número, os habitantes acabam torcendo para equipes do Rio de Janeiro e São Paulo. Alguns fatores são estruturais: o campeão estadual do Amazonas, por exemplo, ganha como parte do “prêmio” uma vaga no Campeonato Brasileiro da Série D. Assim, uma equipe amazonense hipotética teria que, após ser campeã estadual, vencer três campeonatos Brasileiros seguidos (da Série D, da Série C e da Série B) para finalmente conquistar uma vaga na primeira divisão. Nenhuma surpresa que isto jamais tenha acontecido. E não se pode culpar a pouca importância econômica ou a dimensão da população. Manaus tem população 30% maior do que Porto Alegre (2 milhões contra 1,4 milhões), e um PIB equivalente (Porto Alegre é o sexto município com maior PIB do Brasil, com 68 bilhões de reais em 2017 enquanto Manaus é o sétimo, com 67 bilhões).

Foto: Bruna Borecki, Projeto Torcedores
Foto: Bruna Borecki, Projeto Torcedores

Outro fator a explicar a presença das grandes equipes do centro do país é o sistema da mídia. Como as grandes emissoras sempre estiveram localizadas no Rio e em São Paulo, seu ponto de vista “local” facilmente se torna “nacional”. A formação dessas massas torcedoras nos sertões está associada aos primórdios do rádio esportivo no Brasil. Os transmissores em ondas curtas já nos anos 1930 tinham potência de antena para cobrir todo o território nacional. A programação esportiva das emissoras apresentava a transmissão de matches entre os times das localidades das emissoras, Rio de Janeiro e São Paulo, para todo o território nacional, fazendo delas equipes de abrangência nacional.

Um terceiro fator a influenciar a formação dessas torcidas poderia ser chamado de “patrilinearidade futebolística”. Existe entre os/as torcedores/as que pesquisamos uma tendência majoritária em adotar o mesmo time do pai. Geração após geração sob esta tendência, e torcer para o mesmo clube se torna uma tradição familiar. Assim, a permanência de massas torcedoras em locais distantes da sede dos clubes se deve a uma circunstância de fatores estruturais, políticos, econômicos e culturais que operam concomitantemente, de modo a conservar a influência cultural imperial de algumas regiões, consideradas “centrais” sobre outras, ditas “periféricas”.

Essas e outras contradições me fazem duvidar da dimensão pretensamente democrática do futebol. Esses obstáculos simbólicos, financeiros, tecnológicos e políticos operam estruturalmente em conjunto para sustentar um sistema de exclusão e diferença, que explora algumas regiões para benefício de outras, e que opera pari passu com estruturas mais amplas de dominação e controle. Por isso eu simpatizo com times como o Aimoré, o Central de Caruaru ou o Independente de Limeira: como todos nós, eles lutam para sobreviver em circunstâncias desfavoráveis, nas periferias do sistema global, à margem do Grand Monde. Não nos iludamos: a extraordinária vitória do Inter sobre o Barcelona na final do Mundial Interclubes em 2006 foi também um vexame. Para o Barcelona.

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Édison Gastaldo

Antropólogo, docente e pesquisador no Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Autor de "Pátria, Chuteiras e Propaganda"(AnnaBlume/Unisinos, 2002), "Erving Goffman, desbravador do cotidiano"(Tomo Editorial, 2004), "Nações em Campo: Copa do Mundo e identidade nacional (com Simoni Guedes, Intertexto, 2006), "Publicidade e Sociedade" (Sulina, 2013) e "Etnometodologia & Análise da Conversa"(com Rod Watson, Vozes/PUC-Rio, 2015).

Como citar

GASTALDO, Édison. Imperialismos Futebolísticos. Ludopédio, São Paulo, v. 106, n. 16, 2018.
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