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A Geni sou eu: contra o árbitro eletrônico

Marcos Alvito 21 de outubro de 2016

“Toda unanimidade é burra” (Nelson Rodrigues)

Serei apedrejado em praça pública. Amigos de longa data virarão o rosto ao passar por mim na rua, não sem antes cuspirem no chão. Terei minha cabeça cortada no Foicebuque, esta sangrenta arena de paixões virtuais. Tudo isso porque venho aqui defender o indefensável. Sou contra o árbitro de tevê, de videotape, eletrônico, seja lá que nome for. O nome oficial é árbitro de vídeo. Mas vocês sabem muito bem do que eu estou falando. Porque só se fala nisso ultimamente.

É comum, em situações de desespero, apelar para o que parece ser uma solução milagrosa, que corrigirá todos os males, que solucionará todos os problemas. Ora, venhamos e convenhamos, a arbitragem no Brasil é ruim e por vezes até desastrosa. Isto é ponto pacífico. Sendo assim, o raciocínio aparentemente simples e lógico é que a introdução do árbitro de vídeo (doravante AV) irá impedir erros grosseiros que hoje afetam o resultado das partidas: gols em impedimento, gols em que não havia impedimento e que foi marcado, pênaltis que não foram dados, pênaltis que não deveriam ter sido dados e por aí vai.

Oficialmente, segundo a CBF, quando o AV passar a atuar, o fará da seguinte maneira: utilizando a imagem televisiva simultânea (suponho que da rede de televisão que transmite o jogo) e fazendo uso de replay se necessário. Havendo comunicação entre o árbitro de campo e o AV, este irá atuar sempre em seis ocasiões:

1. Dúvida se a bola entrou ou não no gol;
2. Se a bola saiu ou não pela linha de fundo em jogada ou contexto em que for marcado gol ou pênalti;
3. Definição do local de tiros livres diretos, ocorridos nos limites da grande área, para definir se houve ou não pênalti;
4. Gols e pênaltis marcados, possibilitados e evitados em razão de erro em lances de faltas claras/indiscutíveis, não vistas ou marcadas de modo claramente equivocado;
5. Impedimentos, caso na mesma jogada haja gol ou pênalti;
6. Jogo brusco grave ou agressão física (conduta violenta) indiscutíveis não vistos ou mal decididos pela arbitragem.

Teoricamente, mas só teoricamente, o AV só irá se comunicar com o árbitro quando perceber que o árbitro errou em um lance decisivo como os descritos acima. Claro que o AV pode ainda estar em dúvida e vai pedir que o árbitro espere um pouco para ele passar o replay algumas vezes até ter uma decisão. O que sem dúvida irá interromper o jogo, todos à espera que a verdade venha, literalmente do Deus ex machina.

E no mundo real, o que é que vai acontecer? Ninguém sabe. Mas eu fico imaginando um árbitro brasileiro, sendo xingado pelas duas torcidas, pelos jogadores, treinadores, massagistas, pelo motorista do clube e até pelo vendedor de mate. Há um lance “duvidoso”. Ele vai marcar alguma coisa? Na dúvida ele vai apitar e consultar o AV, sem dúvida. E dá-lhe jogo interrompido.

A sala do VAR. Foto: CBF.

Mas há mais, bem mais. Foi ou não córner? Lateral para quem? Esse lance merece ou não cartão amarelo ou vermelho? Quantos minutos de acréscimo? Quando soprar o apito terminando o jogo? Tudo isso influencia tremendamente o jogo e depende totalmente do juiz, da subjetividade do árbitro.

É absolutamente impossível apitar um jogo de futebol de maneira objetiva e científica. Na natação o olho eletrônico pode dizer com quantos milésimos de segundo Michel Phelps tocou na borda antes dos outros competidores. No tênis a tecnologia pode dizer com certeza se a bola foi dentro ou fora. Mas o futebol é um outro esporte, completamente diferente. Falar a palavra mágica tecnologia e achar que ela é necessariamente um progresso é falta de reflexão e desejo de solucionar um problema de forma instantânea.

Vou repetir aqui uma ideia de vários pensadores da bola, Da Matta, Bromberger, Wisnik e outros. Boa parte da magia do futebol vem da sua semelhança com a vida e suas imperfeições. O talento, o esforço, a disciplina, a tática, tudo isso é muito importante mas não garante nada. Pois existe o acaso, o sobrenatural de Almeida, o montinho artilheiro. E existem também as marcações equivocadas dos juízes. Que fazem parte da história do futebol. Sem elas, o Brasil não teria sido bicampeão do mundo. Perdíamos de 1a 0 para a Espanha em 1962. Nilton Santos desce o sarrafo em um atacante espanhol dentro da nossa área. E depois dá discretamente dois passos para fora da área. O juiz engoliu. Assim como em 1966 o juiz engoliu um gol da Inglaterra contra a Alemanha em uma bola que bateu no travessão e quicou bem longe da linha.

O AV também teria anulado o gol de Maradona contra a Inglaterra em 1986 e que ele intitulou a Mão de Deus…

Entrar em um campo de futebol, disputar uma partida, é desafiar a sorte. Tudo pode acontecer. Querer controlar isso, vigiar o resultado, as marcações, é fruto daquilo que Deleuze intitulou “Sociedade de Controle”. Vigiados por câmeras, vasculhados por robôs na Internet que tentam adivinhar nossos gostos de consumo, estamos acostumados à tirania tecnológica. Por que não instalar câmeras nas escolas e universidades e instalar um professor de vídeo para “checar” a correção daquilo que está sendo dito? No futebol, a tecnologia já está presente na preparação física, na dieta dos jogadores, na fabricação da bola e até nos uniformes. Mas ela não pode invadir o coração do jogo. E o coração do jogo de futebol é o acaso, a vingança, a injustiça, a superação, o sublime, a violência, a fé, o desespero e muito mais.

O que podemos e devemos fazer é profissionalizar a arbitragem. Não faz sentido que um esporte milionário tenha árbitros amadores, que conciliam sua preparação e atuação com outra profissão. Acho até que os árbitros deveriam ser preparados psicologicamente para a função. E deveria haver instruções das comissões de arbitragem no sentido de punir a escandalosa pressão em cima dos árbitros. Que é acirrada por ser hoje o futebol um drama televisivo. Com lances mostrados à exaustão e medidos milimetricamente, mais a facilidade de expressão proporcionada pelas redes sociais, a cada partida o árbitro sofre um linchamento público, sendo execrado em prosa e verso. Hoje o jogo é muito mais rápido e muito mais disputado. Os jogadores, sobretudo os brasileiros, parece que fazem escola de teatro antes de ingressar na profissão, simulando faltas e agressões.

Para terminar e garantir que eu também seja “elogiado” aos quatro cantos, cito uma inteligente provocação feita por Nelson Rodrigues, que entendia como ninguém a alma do futebol:

“O profissionalismo torna inexequível o juiz ladrão. E é pena. Porque seu desaparecimento é um desfalque lírico, um desfalque dramático para os jogos modernos.”

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcos Alvito

Professor universitário alforriado. Escritor aprendiz. Observador de pássaros principiante. Apaixonado por literatura e futebol. Tenho livros sobre Grécia antiga, favela, cidadania, samba e até sobre futebol: A Rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra. O meu café é sem açúcar, por favor.

Como citar

ALVITO, Marcos. A Geni sou eu: contra o árbitro eletrônico. Ludopédio, São Paulo, v. 88, n. 9, 2016.
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