102.19

Donos de videogame

Leandro Marçal 19 de dezembro de 2017

Eleições e bastidores do poder em clubes de futebol me fazem lembrar as histórias do pequeno William. Ele era o único a ter em casa o videogame mais caro da minha infância, desejado por todos da rua.

Papai Noel deve ter cansado de ouvir os pedidos daqueles moleques de pés descalços, esperando o convite do único vizinho para os campeonatos de futebol virtual. E só queríamos jogar futebol, nada de tiros, corridas ou enigmas.

Sem companhia, ele chamava os cinco ou seis da turma para atravessarmos sua garagem com um cachorro grande e um carro maior ainda, entrarmos na sala de quadros pintados pela avó e darmos início às competições em sua grande TV. A mãe dele era a responsável pela bandeja com doces e refrigerantes.

As regras, é claro, haviam sido criadas por William. Não havia CBF capaz de derrubar leis esdrúxulas e claramente criadas para beneficiar o dono da casa. Ele era ruim demais, mas o medo de minguarem os convites criava derrotas propositais. O importante era competir.

Até o dia em que Luizinho não ouviu nossos conselhos e jogou à vera. Era a final. Quando já vencia William por 4 a 0, os gritos de olé de um bando de moleques folgados foram demais. O dono da casa desligou o videogame, alegou cansaço. Estava enjoado e nunca mais recebemos convites para jogar contra ele, que preferia dividir os controles com um primo menor, sempre perdedor.

O antigo vizinho se mudou e não retomamos a amizade e os antigos campeonatos. Nem sei se ele é ligado em esportes mais do que em ostentar sua boa condição financeira, como da última vez que o vi, com um aceno distante em uma festa.

videogame
Jogo de futebol no videogame. Foto: Lucas Figueiredo/CBF.

Se ele tivesse a oportunidade de comandar uma grande agremiação esportiva ou concorrer a um cargo como presidente de um desses clubes por nós amado, seria um grande risco ao esporte. Imagino ele reivindicando os louros pelas vitórias, ainda que sua maior façanha fosse ligar uns aparelhos para o jogo começar numa tela grande.

William ficaria muito bravo em épocas de eleições. Usaria de todos os artifícios para sair ganhador. Ele tem necessidade de vencer, custe o que custar. Certamente apelaria a artimanhas para alterar as regras em cima da hora e sem o consenso de ninguém. Importaria apenas ser beneficiado, como nos campeonatinhos da rua regados a refrigerantes e doces da mãe.

Talvez ele comprasse votos ou desse um jeito de mais gente virar adepta ao clube para comprar sua confiança. Nem que para isso ele os deixasse fazer uns gols. Mas só se ele permitisse, caso contrário o videogame se desligaria assim, no meio da partida, sem mais nem menos.

William deve ter se mudado para a rua de presidentes, candidatos e cartolas do nosso futebol. Mal sabem eles que o jogo é bem mais importante que suas pretensões ridículas. Pena que nós seguimos como os vizinhos sem grana e ainda não compramos nosso próprio aparelho caro. Ficamos aqui, às margens, esperando um convite para entrar em suas casas e jogar uma competição meio armada. Dá medo de ganhar e ser expulso, sem direito a doces e refrigerantes.

Mas o jogo continua, é maior que tudo. Apesar dos Williams, mesmo que não haja docinhos, ainda que não tenhamos direito a um refrigerante. Eles podem ter o videogame, nós temos a alma. Luizinho terá sempre minha admiração. Toda vez que não me rendo, me sinto goleando. E me orgulho de não puxar o fio da tomada.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Donos de videogame. Ludopédio, São Paulo, v. 102, n. 19, 2017.
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